Parodiando
Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os
modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus
de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato
comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos
presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção,
à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte
violenta.
Estilo
interjetivo -
Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de
Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um
que morreu quando a cidade acordava! Que pena!
Estilo
colorido -
Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de
Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem
branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco
pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o
destino foi negro.
Estilo
antimunicipalista -
Quando mais um dia e sofrimento e desmandos nasceu para esta cidade
tão mal governada, nas margens imundas esburacadas e fétidas da
Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujo arredores falta água há vários
meses, sem falar nas freqüentes mortandades de peixes já famosas, o
vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a
ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver
de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não
podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que
pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?
Estilo
reacionário
-
Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o
profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi
logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes
desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma
sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos
visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.
Estilo
então
-
Então o vigia de uma construção em Ipanema não tendo sono, saiu
então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um
homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e
tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te
contar isto.
Estilo
áulico
-
À sobremesa, alguém falou ao Presidente, que na manhã de hoje o
cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de
Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares
telegrafasse em seu nome à família enlutada. Como lhe informassem
que a vítima ainda não fora identificada, S. Exa., com o seu
estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas
apreciadas blagues.
Estilo
schmidtiano
-
Coisa terrível é o encontro com um cadáver desconhecido à margem
de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma
humildade mas seus olhos eram azuis, olhos para a festa alegre
colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava
ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,
este rio um pouco profundo caluniado de morte.
Estilo
complexo de Édipo
-
Onde andará a mãezinha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo
de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços
carinhosos?
Estilo
preciosista
-
No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua
a Estrela d´Alva, o atalaia de uma construção civil, que
perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa
serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido
ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.
Estilo
Nélson Rodrigues -
Usava gravata de bolinhas azuis e morreu!
Estilo
sem jeito
-
Eu
queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um
Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas
não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento
são capazes de expressar esse sentimento: Mas eu gostaria de deixar,
ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se
cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma
tragédia. Não sei escrever, mas o leitor poderá perfeitamente
imaginar o que foi isso. Triste, muito triste, ah, se eu soubesse
escrever.
Estilo
feminino
-
Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sach´s legalíssimo, e
dormi tarde, com o Tony. Pois logo hoje minha filha que eu estava
exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também
querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer
aquele plissadinho, como o da Tereza, o Roberto resolveu me telefonar
quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que ia te
contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível,
um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que
tenho horror de gente morta.
Estilo
lúdico ou infantil
-
Na madrugada de hoje por cima o corpo de um homem por baixo foi
encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A
vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha
aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.
Estilo
concretista
-
Dead dead man man mexe mexe Mensch Mensch MENSCHEIT.
Estilo
didático
-
Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da
Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; c) teológico.
Policial: o homem em sociedade, o humano: homem em si mesmo;
teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma de
Deus: epidenômeno. Muito simples, como os senhores veem.
Paulo
Mendes Campos,
in
Crônicas
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