domingo, 3 de maio de 2015

Bom mesmo

O homem passa por várias fases na sua breve estada neste palco que é o mundo, segundo Shakespeare, que só foi original porque foi o primeiro que disse isso. Muitas coisas distinguem uma fase da outra – a rigidez dos tecidos, o alcance e a elasticidade dos membros, a energia e o que se faz com ela -, mas o que realmente diferencia os estágios da experiência humana sobre a Terra é o que o homem, a cada idade, considera bom mesmo. Não o que ele acha bom – o que ele acha melhor. Melhor do que tudo. Bom mesmo.
Um recém-nascido, se pudesse participar articuladamente de uma conversa com homens de outras idades, ouviria pacientemente a opinião de cada um sobre as melhores coisas do mundo e no fim decretaria:
Conversa. Bom mesmo é mãe.
Já um bebê de mais idade discordaria.
Bom mesmo é papinha.
Depois de uma certa idade, a escolha do melhor de tudo passa a ser mais difícil. A infância é um viveiro de prazeres. Como comparar, por exemplo, o orgulho de um pião bem lançado, ou o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entres os dedos, com o cheiro de terra úmida ou de caderno novo? Existem gostos exóticos:
Bom mesmo é cheiro de Vick Vaporub.
Mas acho que, tirando-se uma média das opiniões de pré-adolescentes normais e brasileiros, se chegaria fatalmente à conclusão de que, nessa fase, bom mesmo, melhor do que tudo, melhor até do que fazer xixi na piscina, é passe de calcanhar que dá certo.
Existe ainda uma fase, no começo da puberdade, em que a indecisão é de outra natureza. O cara se acha na obrigação de pensar que bom mesmo é mulher (no caso prima, que é parecido com mulher), mas no fundo ainda tem a secreta convicção de que bom mesmo é acordar com febre na segunda-feira e não precisar ir à aula. Depois, sim, vem a fase em que não tem conversa:
Bom mesmo é sexo!
Essa fase dura, para muita gente, até o fim da vida. Mesmo quando sexo não está em primeiro lugar numa escala de preferências (“Pra mim é sexo em primeiro e romance policial em segundo, longe”) serve como referência. Daí para diante, quando alguém disser que “bom mesmo” é outra coisa que não o sexo estará sendo exemplarmente honesto ou desconcertantemente original.
Olha, bom mesmo é figada com queijo.
Melhor do que sexo?
Bem… Cada coisa na sua hora.
Há quem anuncie o que prefere mesmo como quem faz uma confissão há muito contida. Abre o jogo e o peito, e não importa que pensem que o sexo não lhe interessa mais:
Pensem o que quiserem. Pra mim, bom mesmo é discurso de baiano.
E há casos patéticos. Tem uma crônica do Paulo Mendes Campos em que ele conta de um amigo que sofria de pressão alta e era obrigado a fazer uma dieta rigorosa. Certa vez, no meio de uma conversa animada de um grupo, durante a qual mantivera um silêncio triste, ele suspirou fundo e declarou:
Vocês ficam aí dizendo que bom mesmo é mulher. Bom mesmo é sal!
Com a chamada idade madura, embora persista o consenso de que nada se iguala ao prazer, mesmo teórico, do sexo, as necessidades do conforto e os pequenos prazeres das coisas práticas vão se impondo.
Meu filho, eu sei que você, aí tão cheio de vida e de entusiasmo, não pode compreender isso. Mas tome nota do que eu vou dizer porque um dia você concordará comigo: bom mesmo é escada rolante.
E assim é a trajetória do homem e seu gosto inconstante sobre a Terra, do colo da mãe, que parece que nada, jamais, substituirá, à descoberta final de que uma boa poltrona reclinável, se não é igual, é parecida. E que bom, mas bom mesmo, é não precisar ir a lugar nenhum, mesmo sem febre.
Luís Fernando Veríssimo, in Novas comédias da vida privada

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