Quem
defende as barbaridades cometidas pelo regime militar no Brasil
costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime.
Assim, reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra
os seus. Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo
foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível
entre os mortos de um lado e de outro. Não apenas porque houve mais
mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que
se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade.
O
arco de cumplicidade dos atentados contra o regime era limitado à
iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já
o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era
enorme, era o estado brasileiro. Quando falamos nos “porões da
ditadura” em que pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos
lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou
pagas pelo poder público – quer dizer, por todos nós.
A
cumplicidade com o que acontecia nos “porões”, em muitos casos,
foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser
investigada a participação de empresários e outros civis na
chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da repressão,
por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um estado assassino só
existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava
acontecendo.
A
contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha
retroativa pela memória do País e igualar os dois arcos de
cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram. Todas as
mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do
estado ou num confronto com as forças do estado na selva em que
ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais,
para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se
quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices
involuntários.
Luís
Fernando Veríssimo, in cultura.estadao.com.br, 01/05/2014
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