“Estou
num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente
imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio
nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima
de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum
para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo
isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em
dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu
corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a
um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido
que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às
nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No
jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram
com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão
enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na
minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco
mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste
momento. Como à veladora do 'Marinheiro' ardem-me os olhos, de ter
pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por
interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num
livro com a brochura a descoser-se.
Se
eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta
carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão
saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta
tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de
chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma
como o verde nas folhas.
Foi
por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente
absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma
grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta
no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina,
para inserir frases e esgares dela no 'Livro do Desassossego'. Mas
isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa
inevitabilidade com que a sinto.”
Fernando
Pessoa, in Carta a Mário de Sá-Carneiro (1915)
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