quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Não há diferença entre mim e todas as outras coisas

Bom, mesmo que tudo isso seja verdade, eu continuo não dando a mínima.” Todo entusiasmado, voltei para o mato naquela noite e pensei: “O que significa eu estar neste universo infinito, pensando que sou um homem sentado sob as estrelas na varanda da terra, mas na verdade sou o vazio e estou desperto naquele vazio e despertar de todas as coisas? Significa que eu sou vazio e estou desperto, e eu sei que sou o vazio, que estou desperto, e que não há diferença entre mim e todas as outras coisas. Em outras palavras, significa que eu me transformei na mesma coisa que tudo o mais. Significa que eu me transformei no Buda”. Eu sentia aquilo de verdade e também acreditava naquilo e exultava só de pensar no que eu tinha para contar a Japhy quando voltasse para a Califórnia. “Pelo menos ele vai escutar”, pensei, amuado. Sentia enorme compaixão pelas árvores porque éramos a mesma coisa; fazia carinho nos cachorros que nunca discordavam de mim a respeito de nada. Todos os cães amam Deus. Eles são mais sábios do que seus donos. Disse isso aos cachorros, também, eles me ouviram com as orelhas em riste e lamberam meu rosto. Para eles, não fazia a mínima diferença, contanto que eu estivesse lá. São Raymond dos Cachorros era quem eu fui naquele ano, se não mais ninguém nem nada mais. Às vezes, no mato, eu só ficava lá sentado olhando para as coisas em si mesmas, tentando, de qualquer modo, adivinhar o segredo da existência. Ficava olhando para as ervas longas e amarelas e encurvadas que ficavam na frente da minha esteira de capim, meu Assento Tathagata da Pureza e que apontavam em todas as direções e conversavam cabeludas à medida que os ventos ditavam Ta Ta Ta, em grupos de fofoca com alguns ramos solitários orgulhosos de se exibir de um lado, ou os doentes e os meio-mortos caídos, toda a congregação de mato vivo ao vento de repente parecia soar como sinos e parecia pular de tanta animação e tudo aquilo era feito de uma coisa amarela que despontava do solo e eu pensava: É isso aí. “Rop rop rop”, eu berrava para as ervas, e elas me mostravam a direção do vento apontando seus ramos inteligentes para indicar e castigar e se esquivar, algumas enraizadas na idéia da terra úmida florescente de imaginação que havia passado seu carma para a própria raiz e o caule …. Foi sinistro. Eu caíra no sono e sonhara com as palavras: “Por meio deste ensinamento a terra chegou ao fim”, e sonhara com minha mãe anuindo com a cabeça inteira solenemente, humpft, e com os olhos fechados. Por que é que eu iria me preocupar com todas as dores arrepiantes e tudo que há de tediosamente errado no mundo, os ossos humanos não passam de linhas vãs perdendo tempo, todo o universo é um molde vazio de estrelas. “Eu sou o Rato Vazio Bhikku!”, sonhei.
Jack Kerouac, in Os vagabundos iluminados

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