Há 64 anos, um adolescente
fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava,
um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo,
porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor,
que era, sozinho, todo o pessoal da redação.
O homem olhou-o, cético, e
perguntou:
― Sobre o que pretende escrever?
― Sobre tudo. Cinema, literatura,
vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.
O diretor, ao perceber que
alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de
graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que
ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas
croniquices.
Comete é tempo errado de
verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador
de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos
leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.
Creio que ele pode gabar-se
de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista
brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da
República, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes
militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante,
a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os
movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que
ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as
catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas
pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são
certamente as melhores.
Viu tudo isso, ora sorrindo ora
zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados.
Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou
distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do
próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a
si mesmo antes que outros o façam.
Crônica tem essa vantagem:
não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição
correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo
saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que
ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política
nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei
bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico
etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de
nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou
comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie
de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não
trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a
vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na
divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a
interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da
imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar
influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte.
Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à
espera do coletivo.
Com esse espírito, a tarefa do
croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria
nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas
doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em
compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É
para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à
História”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e
esquecer as descalçadeiras.
Foi o que esse outrora-rapaz
fez ou tentou fazer em mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais
tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser
homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas
o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao
público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a
foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou
revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes
casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e
o Jornal do Brasil, por seu
conceito humanístico da função da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade
no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças
do velho jornalista.
E é por admitir esta noção
de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se
despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois
escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça.
Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.
Aos
leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
Carlos Drummond de Andrade, in Jornal do Brasil, 29/09/1984
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