Meu
pai, que me não esperava, abraçou-me cheio de ternura e agradecimento. - Agora
é deveras? disse ele. Posso enfim...?
Deixei-o
nessa reticência, e fui descalçar as botas, que estavam apertadas. Uma vez
aliviado, respirei à larga, e deitei-me a fio comprido, enquanto os pés, e todo
eu atrás deles, entrávamos numa relativa bem-aventurança. Então considerei que
as botas apertadas são uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer
os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado,
desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros
e de Epicuro. Enquanto esta ideia me trabalhava no famoso trapézio, lançava eu
os olhos para a Tijuca, e via a aleijadinha perder-se no horizonte do
pretérito, e sentia que o meu coração não tardaria também a descalçar as suas
botas. E descalçou-as o lascivo. Quatro ou cinco dias depois, saboreava esse
rápido, inefável e incoercível momento de gozo, que sucede a uma dor pungente,
a uma preocupação, a um incômodo... Daqui inferi eu que a vida é o mais
engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião
de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade
terrestre. Em verdade vos digo que toda a sabedoria humana não vale um par de
botas curtas.
Tu, minha Eugênia, é que não as descalçaste nunca;
foste aí pela estrada da vida, manquejando da perna e do amor, triste como os
enterros pobres, solitária, calada, laboriosa, até que vieste também para esta
outra margem... O que eu não sei é se a tua existência era muito necessária ao
século. Quem sabe? Talvez um comparsa de menos fizesse patear a tragédia
humana.
Machado de Assis, in Memórias
póstumas de Brás Cubas
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