Uma das
coisas mais ingênuas e comoventes da vida do Barão do Rio Branco era o seu
sonho de fazendeiro. Homem nascido e vivido em cidade, traça de bibliotecas,
urbano até a medula, cada vez que uma coisa o aborrecia em meio às batalhas
diplomáticas, seu desabafo era o mesmo, em carta a algum amigo: “Penso em
largar tudo, ir para São Paulo, comprar uma fazenda de café, me meter lá para o
resto da vida…”
Nunca
foi, naturalmente; mas viveu muito à custa desse sonho infantil, que era um
consolo permanente.
Por que
não confessar que agora mesmo, neste último carnaval, visitando a fazenda de um
amigo, eu, pela décima vez, também não me deixei sonhar o mesmo sonho? Com
fazenda não, isso não sonhei; os pobres têm o sonho curto; sonhei com o mesmo
que sonham todos os oficiais administrativos, todos os pilotos de aviação
comercial, todos os desenhistas de publicidade, todos os bichos urbanos mais ou
menos pobres, mais ou menos remediados: pegar um dinheirinho, comprar um sítio
jeitoso, ir melhorando a casa e a lavoura, vai ver que no primeiro ano dava
para se pagar, depois quem sabe daria uma renda modesta, mas suficiente para
uma pessoa viver sossegada; com o tempo comprar, talvez mais uns alqueires…
Meu pai
foi durante algum tempo sitiante, minha mãe era filha de fazendeiro, meus tios
eram todos da lavoura… Mas que brasileiro não é mais ou menos assim, não guarda
alguma coisa da roça e não tem a melancólica fantasia, de vez em quando, de
voltar?
Aqui
estou eu, falso fazendeiro, montado no meu cavalo, a olhar minhas terras. Chego
até o curral, um camarada está ordenhando as vacas. Suas mãos hábeis fazem
cruzar-se dois jatos finos de leite que se perdem na espuma alva do balde.
Parece tão fácil, sei que não é. Deixo-me ficar entre os mugidos e o cheiro de
estrume, assisto à primeira aula de um boizinho que estão experimentando para
ver se é bom para carro. Seu professor não é o carreiro que vai tocando as
juntas nem o pretinho candeeiro que vai na frente com a vara: é um outro boi,
da guia, que suporta com paciência suas más-criações, obrigando-o a levantar-se
quando se deita de pirraça, arrasta-o quando é preciso, não deixa que ele
desgarre, ensina-lhe ordem e paciência.
No
coice há um boi amarelo que me parece mais bonito que os outros. O carreiro
explica que aquele é seu melhor boi de carro, mas tem inimizade àquele zebu
branco vindo de Montes Claros, seu companheiro de canga; implica aliás com
todos esses bois brancos vindos de Montes Claros. O caboclo sabe o nome, o
sestro, as simpatias e os problemas de cada boi, sabe agradar a cada um com uma
palavra especial de carinho, sabe ameaçar um teimoso – “Mando te vender para o
corte, desgraçado!” – com seriedade e segurança.
Ah,
não dou para fazendeiro; sinto-me um boi velho, qualquer dia um novo diretor de
revista acha que já vou arrastando devagar demais o carro de boi de minha
crônica, imagina se minhas arrobas já não valem mais que meu serviço, manda-me
vender para o corte…
Rubem Braga
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