“Aqui tenho à mesa de cabeceira o último
livro ainda a cheirar à tinta da tipografia. Não há dúvida nenhuma que o
concebi, que o realizei, e que, depois disso, com os magros vinténs que vou
ganhando por estes montes, consegui pô-lo em letra redonda — a forma material
máxima que se pode dar a um escrito. E, contudo, olho esta realidade que eu
tirei do nada, que bem ou mal arranquei de mim, com o mesmo desânimo com que
olho uma teia de aranha. E não é por saber de antemão que o livro vai ser
abocanhado ou ignorado. Não obstante a lei natural que aconselha a que não haja
homem sem homem, é preciso que a santa cegueira do artista lhe dê a força
bastante para, em última análise, ficar só e confiante. Ora eu tenho, como
artista, essa cegueira. O meu desalento vem duma voz negativa que me acompanha
desde o berço e que nas piores horas diz isto: Nada, em absoluto, vale nada.”
Miguel
Torga, in Diário (1936)
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