Papai, você deixa eu ter um cabrito no meu sítio?
Deixo.
E porquinho-da-índia? E ariranha? E macaco? E quatro
cachorros? E duzentas pombas? E um boi? Um rinoceronte?
Rinoceronte não pode.
Tá bem, mas cavalo pode, não pode?
O sítio é apenas um terreno do estado do Rio, sem maiores
perspectivas imediatas. Mas o garoto precisa acreditar no sítio, como outras
pessoas precisam acreditar no céu. O céu dele é exatamente o da festa
folclórica, a bicharada toda, e ele, que nasceu no Rio e, de má vontade, vive
nessa cidade sem animais.
Aliás, ele mesmo desmente que o Rio seja uma cidade sem
bichos, possuindo o dom de descobri-los nos lugares mais inesperados. Se entra
na casa de alguém, desaparece ao transpor a porta, para voltar depois de três
segundos com um gato ou cachorro na mão. A gente vai andando por uma rua em Copacabana,
ele some e ressurge com um pinto em flor. É chegar na Barra da Tijuca, e daí a
cinco minutos, já apanhou um siri vivo.
Localiza eletronicamente todos os animais da redondeza, anda
pela rua em disparada, cumprimenta aqui um papagaio, ali um ganso, mais adiante
um gato, incansável e frustrado.
Não distingue marcas de automóvel, em futebol não vai além de
Garrincha e Nilton Santos, mas sabe perfeitamente o que é um mastiff, um boxer, um doberman. Dá
informações sobre as pessoas de acordo com os bichos que possuam: aquele é o
dono do Malhado, aquela é a dona do Lord... Ao telefone, pergunta por patos,
gatos, e outros cachorros, centenas, milhares de cachorros, cachorros que
prefere aos companheiros, cachorros que o absorvem na rua, na escola, na hora
das refeições, cachorros que costumam latir e pular em seus sonhos, cachorros
mil.
Sua literatura é rigorosamente especializada: livros
coloridos sobre bichos. Engatinha mal e mal na leitura, mas fala com uma
proficiência um pouco alarmante a respeito de répteis, batráquios etc. Filho de
mãe inglesa, confunde fork e knife, mas
sabe o que é seal e walrus. Se
pede um pedaço de papel é para desenhar a zebra ou a baleia.
É claro que sua frustração causa pena. Por isso mesmo, há
algum tempo, ganhou como consolo um canarinho-da-terra. Um dia, como lhe
dissessem que iam dar o passarinho, caso continuasse a comportar-se mal, correu
para a área e abriu a porta da gaiola.
Deram-lhe um bicudo, mas o bicudo morreu de tanto alpiste.
Ganhou, mais tarde, uma tartaruga, pequenina e estúpida, que recebeu na pia do
banheiro o nome de Henriqueta. Nunca qualquer outro quelônio deu tanto serviço.
Foi ao dentista na cidade, e, ao voltar, disse ao pai, pela primeira vez, uma
palavra horrível: estou desesperado.
Tinha perdido a tartaruguinha no lotação.
Ficou o vazio em sua vida. O alívio era ligar o telefone
interurbano para a avó e indagar pelos patos que “possuía” em outra cidade. Ou
fazer uma visita à futura mãe de Poppy,
este é um poodle que deverá nascer daqui a meio ano, prometido de pedra e cal
para ele.
Outro expediente: caçar borboletas, mariposas, grilos, alojar
carinhosamente os insetos nas gaiolas vazias, chamar-lhes pelos nomes dos
antigos bichos mortos ou desaparecidos.
Um tio deu-lhe outra vez um canário, o carinho foi demais, o
passarinho morreu. Não há nada a fazer, por enquanto, e ele dedicou-se à arte
de desenhar bichos. De vez em quando, ainda se anima e entra em casa afogueado,
mostrando alguma coisa invisível nas mãos: “Olha que estouro de grilo!”
Mas os grilos e as borboletas legais morrem ou saem tranquilamente das gaiolas, e ei-lo novamente
de mãos e alma vazias.
Deu um jeito: arranjou
alguns pires sem uso e plantou sementes de feijão. O banheiro está cheio de
brotos verdes, tímidos. E ele já sabe que possui uma fazenda.
Paulo Mendes Campos, in Homenzinho na ventania
É uma das mais lindas crônicas de Paulo Mendes Campos. Sinto uma estranha nostalgia quando leio. Obrigada por postar.
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