O lugar era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas
e as vacas tão bovinas, que o chefe da família achou que valeria a pena comprar
ali uma fazenda.
Consultou a família que, de pronto, foi contra. Isto
colaborou demais para que o chefe da família entrasse, imediatamente, em
conversações com o proprietário de uma, que se queria desfazer da fazenda, por
achar que ela estava num lugar que não era lá essas coisas, o clima era idiota,
as flores não fugiam daquela variedade: rosas, rosas, rosas, e as vacas,
coitadas, eram simplesmente bovinas — numa total falta de imaginação. Vá-se
querer que as vacas tenham isso!
O negócio foi fechado por um dinheiro grande, e a família
tomou posse da propriedade dois dias depois, data que coincidia com a véspera
do fim das férias.
A fazenda ficava num vale e era separada em duas partes por
um córrego como o que só corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas,
rosas e charcos, galinhas e caseiros.
— Uma idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa,
numa contrariedade de quem faz doze pontos.
— Comprar terra sempre é bom negócio vibrou o chefe da
família, puxando o ar, a encher o peito com um cheiro de estrume que vinha do
estábulo. — Olhe em volta. Até onde a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o
abacateiro? É nosso; Aquele caqui-chocolate? É nosso. A carreira de
jabuticabeiras? Nossa. O mato, a casa, a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo
é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda, é o único pedaço de céu que é nosso,
porque 0 da cidade é do governo. Aqui, mandamos nós, porque aqui tudo é nosso!
— Pra quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa.
— Ora — explicou admiravelmente o chefe da família —, para
ser nosso. Nossa terra, nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou
numa, furando o dedo.
Durante o curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da
fazenda aproximou-se com uma notícia muito importante: a fazenda acabava de
crescer de valor pelo nascimento de uma bezerrinha.
Viu? — comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas
costas da esposa, de modo a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava
comer. - Nasceu uma vaquinha!
A notícia correu para os demais da família ao mesmo tempo em
que, para os pais, corriam os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do
nascimento da novilha.
— É menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão
longos cabelos, nem se sabia se era menino ou menina.
- Não é assim que se fala, menino - esclareceu o pai. - A
pergunta é: bezerra ou bezerro? É uma bezerrinha.
— Vamos ver? Vamos ver? gritavam os filhos a sugestão lógica
das crianças que nunca viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em
pó.
Foram. A vaca não deixou que se aproximassem da cria, que
ficou sendo observada a distância pela família encantada e pelo caseiro
indiferente e até um pouco irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo.
— Quem é o pai? - perguntou a moça mais taluda.
—Um boi desses - errou 0 pai.
— Um touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é
um touro que já era; boi é um touro que perdeu os documentos.
- Pois é — emendou o pai na mesma veemência —, um tourão
danado desses. Olha a carinha dela. Os olhinhos ainda estão fechados.
— Vamos batizar! - gritou um menino.
— Boa idéia - concordou 0 chefe da família. — Quem vai
escolher o nome?
— Eu. Eu. Eu. Eu — disseram, um a cada vez, os quatro filhos
do casal.
E começou a discussão sobre o nome a ser posto na
recém-nascida que, indiferente a tudo, mamava na mãe, provando, assim, que ela
(a mãe) não era tão vaca quanto julgavam.
— Aretha Franklin!
— Janis Joplin.
— Jimi Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me
provem o contrário, essa vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver.
— É fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se
para o caseiro, na indagação do que já afirmara: — O senhor não viu?
— Vi. É fêmea.
E tome de gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva
Maldita, Otorrinolaringologia... Havia os nomes sugeridos a sério e os de
gozação. Todos os que citei eram os a sério. Finalmente, o bom senso ajudou a
solucionar o impasse. Foi a esposa quem sugeriu o nome que lhe pareceu o mais
indicado para a novilhazinha que mamava no seio materno: Long Island.
— Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender.
— Long Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem
fala "mococa".
— A senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se
incapaz de decorar aquilo.
Arranjaram uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe de
família escreveu: LONG ISLAND, tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou
presa no pescoço da novilha para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela
jovem bovina atendia pelo nome de Long Island, nome que fica muito bem para
parque de diversões, mas que não é dos mais adequados para quem cara de Mimosa,
Formosa, Maravilha ou Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o
reconhecimento da peça.
Acabadas as férias, a família voltou à sua poluição
metropolitana e só pôde retornar à fazenda dois anos depois.
Tudo continuava como dantes, com exceção de uma coisinha em
pior estado, uma das quais o geral.
— Caseiro! — chamou o chefe de família, que não sabia que o
caseiro tinha nome: José Caseiro da Silva.
— Pronto, doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a
presteza de um favor bancário.
— Como vai a novilha?
— Está uma vaca! — elogiou o caseiro de um modo que soou
ofensa aos ouvidos da família.
— Já dá leite? — perguntou um dos filhos.
— Dá, né? respondeu o caseiro estranhando a pergunta, pelo
fato de saber (ele é acostumado, porque vive ali) que as vacas não dão outra
coisa senão leite.
— Pois eu quero beber um copo de leite da novilha — ordenou a
esposa do chefe, madrinha de batismo da vaquinha.
E o caseiro, sem que a
família ouvisse, comandou a um seu auxiliar que tirasse um pouco de leite da
vaca "Tabuleta".
Chico Anysio, in O batizado da vaca
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