terça-feira, 18 de março de 2014

Licor

Dulcíssimas cerejas 
no ritual de outubro.
 
Se eu te mordesse os cílios
 
e gemesses de espanto
 
eu diria que o amor
 
é uma invenção do sonho,
 
que o corpo com que exerço
 
esta dança secreta
 
não tem definição
 
mas é garça e poeira,
 
lasca de unha, mancha
 
de sangue num lençol.

Riríamos do amor 
de tal forma alumbrados
 
que o sonho passaria
 
e eu veria a verdade
 
que paira quando tudo
 
é prazer triturado.

Prazer? Eu sondaria 
milímetros de nervos
 
e pesaria os gestos
 
as mínimas torções
 
concluindo com o nada
 
de uma nuvem traçada
 
numa folha vadia.
 
(Nem sequer uma nuvem
 
distante e verdadeira.)

Se quisesses me ouvir 
eu contaria a história
 
de uma imagem que quis
 
roubar do que é real
 
uma gota de mel.

Diria que este furto 
sem dimensão exata
 
seria toda a glória
 
desta imagem sem voz.
 
Se quisesses me ouvir
 
eu te prometeria
 
logo após dispensar
 
levando a minha história.

E eu te desejaria 
o porto da loucura
 
para que só falasses
 
desta opaca memória.

Dulcíssimas cerejas. 
Outubro, a névoa, nada
 
reconstrói o perdido
 
quando é mito refeito
 
de improvável delícia.

Dulcíssimas cerejas, 
imponderável gesto
 
suspenso entre o remorso
 
e a frustrada carícia.
Walmir Ayala

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