Cidadão
se descuidou e roubaram seu celular. Como era um executivo e não sabia mais
viver sem celular, ficou furioso. Deu parte do roubo, depois teve uma ideia.
Ligou para o número do telefone. Atendeu uma mulher.
—
Aloa.
—
Quem fala?
—
Com quem quer falar?
—
O dono desse telefone.
—
Ele não pode atender.
—
Quer chamá-lo, por favor?
—
Ele esta no banheiro. Eu posso anotar o recado?
—
Bate na porta e chama esse vagabundo agora.
Clic.
A mulher desligou. O cidadão controlou-se. Ligou de novo.
—
Aloa.
—
Escute. Desculpe o jeito que eu falei antes. Eu preciso falar com ele, viu? É
urgente.
—
Ele já vai sair do banheiro.
—
Você é a...
—
Uma amiga.
—
Como é seu nome?
—
Quem quer saber?
O
cidadão inventou um nome.
—
Taborda. (Por que Taborda, meu Deus?) Sou primo dele.
—
Primo do Amleto?
Amleto.
O safado já tinha um nome.
—
É. De Quaraí.
—
Eu não sabia que o Amleto tinha um primo de Quaraí.
—
Pois é.
—
Carol.
—
Hein?
—
Meu nome. É Carol.
—
Ah. Vocês são...
—
Não, não. Nos conhecemos há pouco.
—
Escute Carol. Eu trouxe uma encomenda para o Amleto. De Quaraí. Uma pessegada,
mas não me lembro do endereço.
—
Eu também não sei o endereço dele.
—
Mas vocês...
—
Nós estamos num motel. Este telefone é celular.
—
Ah.
—
Vem cá. Como você sabia o número do telefone dele? Ele recém-comprou.
—
Ele disse que comprou?
—
Por que?
O
cidadão não se conteve.
—
Porque ele não comprou, não. Ele roubou. Está entendendo? Roubou. De mim!
—
Não acredito.
—
Ah, não acredita? Então pergunta pra ele. Bate na porta do banheiro e pergunta.
—
O Amleto não roubaria um telefone do próprio primo.
E
Carol desligou de novo.
O
cidadão deixou passar um tempo, enquanto se recuperava. Depois ligou.
—
Aloa.
—
Carol, é o Tobias.
—
Quem?
—
O Taborda. Por favor, chame o Amleto.
—
Ele continua no banheiro.
—
Em que motel vocês estão?
—
Por que?
—
Carol, você parece ser uma boa moça. Eu sei que você gosta do Amleto...
—
Recém nos conhecemos.
—
Mas você simpatizou. Estou certo? Você não quer acreditar que ele seja um
ladrão. Mas ele é, Carol. Enfrente a realidade. O Amleto pode Ter muitas
qualidades, sei lá. Há quanto tempo vocês saem juntos?
—
Esta é a primeira vez.
—
Vocês nunca tinham se visto antes?
—
Já, já. Mas, assim, só conversa.
—
E você nem sabe o endereço dele, Carol. Na verdade você não sabe nada sobre
ele. Não sabia que ele é de Quaraí.
—
Pensei que fosse goiano.
—
Ai esta, Carol. Isso diz tudo. Um cara que se faz passar por goiano...
—
Não, não. Eu é que pensei.
—
Carol, ele ainda está no banheiro?
—
Está.
—
Então sai daí, Carol. Pegue as suas coisas e saia. Esse negocio pode acabar
mal. Você pode ser envolvida. — Saia daí enquanto é tempo, Carol!
—
Mas...
—
Eu sei. Você não precisa dizer. Eu sei. Você não quer acabar a amizade. Vocês
se dão bem, ele é muito legal. Mas ele é um ladrão, Carol. Um bandido. Quem
rouba celular é capaz de tudo. Sua vida corre perigo.
—
Ele esta saindo do banheiro.
—
Corra, Carol! Leve o telefone e corra! Daqui a pouco eu ligo para saber onde
você está.
Clic.
Dez
minutos depois, o cidadão liga de novo.
—
Aloa.
—
Carol, onde você está?
—
O Amleto está aqui do meu lado e pediu para lhe dizer uma coisa.
—
Carol, eu...
—
Nós conversamos e ele quer pedir desculpas a você. Diz que vai devolver o
telefone, que foi só brincadeira. Jurou que não vai fazer mais isso.
O
cidadão engoliu a raiva. Depois de alguns segundos falou:
—
Como ele vai devolver o telefone?
—
Domingo, no almoço da tia Eloá. Diz que encontra você lá.
—
Carol, não...
Mas
Carol já tinha desligado.
O
cidadão precisou de mais cinco minutos para se recompor. Depois ligou outra
vez.
—Aloa.
Pelo
ruído o cidadão deduziu que ela estava dentro de um carro em movimento.
—
Carol, é o Torquato.
—
Quem?
—
Não interessa! Escute aqui. Você está sendo cúmplice de um crime. Esse telefone
que você tem na mão, esta me entendendo? Esse telefone que agora tem suas
impressões digitais. É meu! Esse salafrário roubou meu celular!
—
Mas ele disse que vai devolver na...
—
Não existe Tia Eloá nenhuma! Eu não sou primo dele. Nem conheço esse cafajeste.
Ele esta mentindo para você, Carol.
—
Então você também mentiu!
—
Carol...
Clic.
Cinco
minutos depois, quando o cidadão se ergueu do chão, onde estivera mordendo o
carpete, e ligou de novo, ouviu um "Alô" de homem.
—
Amleto?
—
Primo! Muito bem. Você conseguiu, viu? A Carol acaba de descer do carro.
—
Olha aqui, seu...
—
Você já tinha liquidado com o nosso programa no motel, o maior clima e você
estragou, e agora acabou com tudo. Ela está desiludida com todos os homens,
para sempre. Mandou parar o carro e desceu. Em plena Cavalhada. Parabéns primo.
Você venceu. Quer saber como ela era?
—
Só quero meu telefone.
—
Morena clara. Olhos verdes. Não resistiu ao meu celular. Se não fosse o celular,
ela não teria topado o programa. E se não fosse o celular, nós ainda estaríamos
no motel. Como é que chama isso mesmo? Ironia do destino?
—
Quero meu celular de volta!
—
Certo, certo. Seu celular. Você tem que fechar negócios, impressionar clientes,
enganar trouxas. Só o que eu queria era a Carol...
—
Ladrão!
—
Executivo!
—
Devolve meu...
Clic.
Cinco
minutos mais tarde. Cidadão liga de novo. Telefone toca várias vezes. Atende
uma voz diferente.
—
Ahn?
—
Quem fala?
—
É o Trola.
—
Como você conseguiu esse telefone?
—
Sei lá. Alguém jogou pela janela de um carro. Quase me acertou.
—
Onde você está?
—
Como eu estou? Bem, bem. Catando meus papéis, sabe como é. Mas eu já fui de
circo. É. Capitão Trovar. Andei até pelo Paraguai.
—
Não quero saber de sua vida. Estou pagando uma recompensa por este telefone. Me
diga onde você está que eu vou buscar.
—
Bem. Fora a Dalvinha, tudo bem. Sabe como é mulher. Quando nos vê por baixo,
aproveita. Ontem mesmo...
—
Onde você está? Eu quero saber onde!
— Aqui mesmo, embaixo do viaduto. De
noitinha. Ela chegou com o índio e o Marvão, os três com a cara cheia, e...
Luís
Fernando Veríssimo, in As
mentiras que os homens contam
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