Se a poesia tivesse um destino –
este – seria o infinito, e não seus olhos. Lamento informar, senhora
passageira: a leitura é apenas uma ponte entre a palavra realizada e a tão
sonhada eternidade. A poesia existiria mesmo se não houvesse ninguém para decliná-la
ou declamá-la. Ela não precisa da gente, ela se abastece do que sente e pranto.
Ela não precisa de gente, ela se acompanha sozinha e pronto.
Seus olhos seriam
úteis em outro momento, não agora que escrevo um poema. Um poema com asas,
diga-se de passagem. Pois é, a poesia é uma espécie de pássaro: talvez um
papagaio – desses que repete a alma do seu dono. Ou talvez seja mais poético
acreditar que o poeta é o piloto das sílabas. Seu papel: levar as palavras
desprotegidas para um lugar seguro.
(seus olhos?)
No saguão de
embarque, os sentimentos já formam uma pequena fila. Todos já sabem o seu
destino. O Amor, sempre ele, ocupa o assento
26B, e parece não se importar com a vizinhança. Bate um papo afetivo com a
carência, que ainda se ajeita na poltrona perto do corredor, e oferece ajuda
para o ego, que parece ignorar seus colegas de voo e coloca as malas no bagageiro
sem responder. O Remorso fez
check-in mais cedo e optou por uma poltrona perto da saída para que todos sejam
obrigados a passar por ele ao menos uma vez nessa viagem. A Liberdade – essa
passageira tão desejada – ficou ao lado da asa direita. Mas ela não fica parada
muito tempo, e se levanta antes mesmo da fase da decolagem se dar por completa.
Ela adora a sensação de se desafivelar por livre e espontânea necessidade. A Saudade não embarcou dessa vez. Já está do outro
lado do mundo à espera do Passado, da Agonia ou de qualquer outra palavra dolorida. Todos
os assentos estão ocupados. Minto: a Ausência se esqueceu do bilhete de embarque e, mais uma
vez, deixou um vazio entre Você, na 18A e Eu, na 18C. O Tempo até se ofereceu para remediar a nossa
distância na 18B. Negamos. Às vezes, é bom deixar o Nada entre
nós.
Os motores estão
com a força total disponível, na exata velocidade que eu preciso para alçar voo
e ver cada verso se descolar da pista de decolagem – essa imensa página de
concreto! Desligo o celular. Assim que o painel luminoso autorizar, ligarei a
vida em modo avião.
Eu nunca escrevi
um poema sequer para querer ser lido. Sempre escrevi para voar. Quando aprendi
a escrever, na verdade, me foi ensinado a voar. E voar aos seis anos se faz sem
rotas, sem fronteiras, sem medo. Bater asas aos 29 é mais perigoso. A gente
sente tanta ânsia, tanta vertigem, contanto com uma pequena vantagem: os
desenhos nas nuvens fazem mais sentido. Vemos nossa vida projetada em full-HD
nessa imensa tela de algodão. Admiro um dragão. Será que ele vai engolir meu
orgulho? Mergulho em outra imagem: quem aparece é seu rosto. Como você mudou!
Agora é seu sorriso que se mostra. Sorrio de volta. Seu adeus entra em cena e
acena. Recuso-me a devolver o gesto de despedida. Gosto quando você vive em
mim. Se eu chorar, vai chover.
Engraçado: mesmo aqui, a dez
mil pés, penso em quando eu ainda dormia em suas mãos, ali, a dez centímetros
do seu peito. Elas formavam uma espécie de pequeno travesseiro. Acredite: era o
travesseiro mais confortável já inventado pela humanidade. A essa altura, não
adianta se lamentar. O passado ficou
para trás em itálico, o presente é seu NOME escrito em caixa-alta, e o futuro em
negrito é um risco – em todos os sentidos.
Senhora
passageira, lamento informar:
Nosso amor foi
uma espécie de ponte aérea, com escala em tantas tentativas. Em algum momento
dessa viagem poética, entre Dumont e Drummond, desviamos da zona de
turbulência, mas perdemos a conexão.
Preciso pousar o
ponto final.
Pela
tensão, obrigado.
Pedro Gabriel nasceu em N’Djamena, capital do Chade, em 1984. Filho de pai suíço e
mãe brasileira, chegou ao Brasil aos 12 anos — e até os 13 não formulava uma
frase completa em português. A partir da dificuldade na adaptação à língua
portuguesa, que lhe exigiu muita observação tanto dos sons quanto da grafia das
palavras, Pedro desenvolveu talento e sensibilidade raros para brincar com as
letras. É formado em publicidade e propaganda pela ESPM-RJ e criador de “Eu me
chamo Antônio”, perfil do Instagram e página do Facebook que deram origem ao
livro Eu me chamo Antônio,
lançado pela Intrínseca.
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