Já
que estamos nesse clima de recomeçar, com a alma limpa para novas coisas, vou
iniciar transcrevendo algo que recebi. Havia pensado em outra crônica, coisa
tipo "propostas para um novo milênio", como o fez Ítalo Calvino. Mas
à$ vezes um texto parabólico, elíptico, pode nos dizer mais que outros
pretensamente objetivos. Ei-lo:
"A
águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por
volta dos 40, ela precisa tomar uma séria e difícil decisão.
Nessa
idade, suas unhas estão compridas e flexíveis. Não conseguem mais agarrar as
presas das quais se alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As
asas, envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o
peito. Voar já é difícil.
Nesse
momento crucial de sua vida a águia tem duas alternativas: não fazer nada e
morrer, ou enfrentar um dolorido processo de renovação que se estenderá por 150
dias.
A
nossa águia decidiu enfrentar o desafio. Ela voa para o alto de uma montanha e
recolhe-se em um ninho próximo a um paredão, onde não precisará voar. Aí, ela
começa a bater com o bico na rocha até conseguir arrancá-lo. Depois, a águia
espera nascer um novo bico, com o qual vai arrancar as velhas unhas. Quando as
novas unhas começarem a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. Só após
cinco meses ela pode sair para o voo de renovação e viver mais 30 anos."
Esse
texto foi mandado como um cartão de fim de ano pela Rose Saldiva, da Saldiva
Propaganda. Tem mais um parágrafo explicitando, comentando essa parábola e o
titulo geral é "Renovação".
Achei
que você ia gostar de tomar conhecimento disto, sobretudo quando janeiro nos
inunda com sua luz.
Este
texto vale mais que mil ilustrações.
Sei
como é difícil uma nova ou surpreendente ideia para cartão de fim de ano. Mas esse,
além de bater fortemente em nosso imaginário, dispara em nós uma série de
correlações e desdobramentos.
A
abertura é seca e forte. Não há uma palavra sobrando. Parece as batidas do
destino na Quinta Sinfonia de Beethoven. Releiam. "A águia é a única ave
que chega a viver 70 anos. Mas para isso acontecer, por volta dos 40, ela
precisa tomar uma séria e difícil decisão.”
Já
li em algum lugar que Jung dizia que, em torno dos 40, alguma coisa subterrânea
começa a ocorrer com a gente e os seres humanos sentem que estão no auge de sua
força criativa. É quando podem (ou não) entrar em contato com forças profundas
de sua personalidade.
Já
ouvi de especialistas em administração de empresas que tem uma hora em que elas
começam a crescer e seus dirigentes têm que tomar uma decisão — ou fazem com
que cresçam de vez assumindo mais pesados desafios ou, então, fecham, porque
ficar estagnado é apenas adiar a morte.
Já
mencionei em outras crônicas o personagem Jean Barois (de Roger Martin du Gard)
que fez um testamento aos 40 anos, quando achava que estava no auge de sua
potência intelectual, temendo que na velhice, carcomido e alquebrado, fizesse
outro testamento que negasse tudo aquilo em que acreditava quando jovem. Com
efeito, envelhecendo, fez realmente outro testamento que desautorizava e
desmentia o anterior. É que sua perspectiva na trajetória da vida mudara, como
muda a de um viajante ou a do observador de um fenômeno.
O
ano está começando.
Mais
grave ainda: um século está se iniciando.
Gravíssimo:
mais que um ano, mais que um século, um novo milênio está se inaugurando.
Três
vezes Sísifo: o ano, o século, o milênio.
Sísifo
— aquele que foi condenado a rolar uma pedra montanha acima, sabendo que quando
estivesse quase chegando no topo — cataprum!... a pedra despencaria e ele teria
que empurrá-la, de novo, lá para o alto.
Pois
bem: "A águia é a única ave que chega a viver 70 anos. Mas para isso
acontecer, por volta dos 40 anos, ela precisa tomar uma séria e difícil
decisão. Nesta idade suas unhas estão compridas. Não conseguem mais agarrar as
presas das quais alimenta. Seu bico, alongado e pontiagudo, curva-se. As asas,
envelhecidas e pesadas em função da espessura das penas, apontam contra o
peito. Voar já é difícil.”
Nossa
sociedade pensou ter inventado uma maneira de resolver, nos seres humanos, o
drama da águia: a cirurgia plástica. Silicone aqui e acolá, repuxar a pele
acolá e aqui, pintar e implantar cabelos. Isto feito, a águia sai flanando
pelos salões, praias, telas, ruas, escritórios e passarelas.
Mas
aquela outra águia prefere uma solução que veio de dentro. Talvez mais
dolorosa. Recolher-se a um paredão, destruir o velho e inútil bico, esperar que
outro surja e com ele arrancar as penas, num rito de reiniciação de 150 dias.
Então
a águia, digamos, acabou de descasar.
(Tem
que redimensionar seu corpo e seus desejos, desmontar casa e sentimentos,
realocar objetos e sensações, reassumir filhos.)
Então
a águia, digamos, acabou de perder o emprego.
(Tem
que descobrir outro trajeto diário, outras aptidões, enfrentar a humilhação.)
Então,
a águia, digamos, acabou de mudar de país.
(A
crise ou o amor levou-a a outras paragens, tem que reaprender a linguagem de
tudo e reinventar sua imagem em outro espelho.)
Então,
a águia, digamos, acabou de perder alguém querido.
(É
como se uma parte do corpo lhe tivessem sido arrancada, sente que não poderá
mais voar como antes, que o azul lhe é inútil.)
Então,
a águia, digamos, está numa nova situação em que está sendo desafiada a mostrar
sua competência.
(Tem
medo do fracasso, acha que não terá garras nem asas para voar mais alto.)
Então,
a águia, digamos, andou olhando sua pele, sua resistência física, certos
achaques de velhice.
Pois
bem. Há que jogar fora o bico velho, arrancar as velhas penas, e recomeçar.
Época
de metamorfose.
Os
estudiosos da metamorfose dizem que não apenas larvas se transformam em
borboletas. Para nosso espanto as próprias pedras passam também por silenciosas
metamorfoses.
Enfim,
parece que estamos condenados à metamorfose. Morrer várias vezes e várias vezes
renascer. Até que, enfim, cheguemos à metamorfose final, onde o que era sonho e
carne se converte em pó.
Mas que fique sempre no azul o
imponderável voo da águia.
Affonso
Romano de Sant’Anna, in O
Globo, Segundo Caderno, edição de 03/01/2001, pág. 8.
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