“Notre Dame de Paris, Notre Dame de
Partout, rogai por mim, rogai por nós, os malferidos de amor, os feridos do
doce langor, os que uivam à lua nas praias desertas do mundo, os que buscam um
vagabundo num bar para falar da bem-amada, para não dizer nada só que ela é
bonita, os que saem andando em campos de estrelas e de repente é uma rua
deserta com um apartamento aceso que fica olhando o deambulante, o amante
perdido, sem rumo e sem prumo, barco sozinho no meio do oceano lunar, é só
olhar, lá está ela, a bem-amada dormindo no céu com os braços para cima, linda
axila, macio feno, suave veneno de paixão, ó não, Nossa Senhora de Paris, Nossa
Senhorazinha de Paris, rogai por mim porque a coisa está ruim, ela está longe
eu sigo nessa névoa de luminosos astros e choro ao ver um rio que corre, uma
estrela que morre, um mendigo que dorme, um cão que faz amor com uma cadela de
olhos úmidos, túmidos seios, negro vórtex, meu amor, Notre Dame de Paris, Notre
Dame de Partout, aqui estou eu, lembrai-vos, diante de vossa portada maior, o
santo de cabeça cortada me espiando sofrer a angústia da espera vem não vem o
homem me oferece cartões-postais de mulher nua pensa que eu sou americano eu
sou é brasileiro do Rio de janeiro onde mora a minha amada numa colmeia a
beira-parque fazendo há dois mil anos mel de amor com que adoçar todas as
minhas mágoas, ó águas do Sena revoltas, minha amada está serena porque nós
viemos de muito, muito, muito longe para nos encontrar, atravessamos os lagos
da infância, cruzamos os desertos da adolescência, galgamos as montanhas da
mocidade e aqui nesta cidade nos encontramos uma só vez, o mês era março, e nos
reencontramos em abril novecentos e sessenta luas depois na rue Pierre Charon e
ela entrou pelos meus olhos, banhou-se no meu cristalino, acendeu-me a íris e
postou-se como santa Luzia no nicho de minhas pupilas oferecendo-me os próprios
olhos numa salva de prata e pôs-se a comer devagarinho minha cabeça enquanto eu
não sabia o que lhe dissesse só pedia vem comigo vem comigo mas ela não podia porque
não era o dia mas lá vem ela de táxi entrou na Île de Ia Cité, rodeou a praça,
que graça é ela, vai saltar, não eu que vou com ela, adeus Notre Dame de Paris,
Notre Dame de l'Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica
dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus
na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono
náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte,
Saravá!”
Vinicius
de Moraes
Nenhum comentário:
Postar um comentário