“Se ocasionalmente nos ocupássemos em nos examinar,
e o tempo que gastamos para controlar os outros e para saber das coisas que
estão fora de nós o empregássemos em nos sondar a nós mesmos, facilmente
sentiríamos o quanto todo esse nosso composto é feito de peças frágeis e
falhas. Acaso não é uma prova singular de imperfeição não conseguirmos assentar
o nosso contentamento em coisa alguma, e que, mesmo por desejo e imaginação,
esteja fora do nosso poder escolher o que nos é necessário? Disso dá bom
testemunho a grande discussão que sempre houve entre os filósofos para
descobrir qual é o soberano bem do homem, a qual ainda perdura e perdurará
eternamente, sem solução e sem acordo: Enquanto nos escapa, o objeto do
nosso desejo sempre nos parece preferível a qualquer outra coisa; vindo a
desfrutá-lo, um outro desejo nasce em nós, e a nossa sede é sempre a mesma. (Lucrécio).
Não importa o que venhamos a conhecer e desfrutar,
sentimos que não nos satisfaz, e perseguimos cobiçosos as coisas por vir e
desconhecidas, pois as presentes não nos saciam; em minha opinião, não que elas
não tenham o bastante com que nos saciar, mas é que nos apoderamos delas com
mão doentia e desregrada: Pois ele viu que os mortais têm à sua disposição
praticamente tudo o que é necessário para a vida; viu homens cumulados de
riqueza, honra e glória, orgulhosos da boa reputação de seus filhos; e entretanto
não havia um único que, em seu foro íntimo, não se remoesse de angústia e cujo
coração não se oprimisse com queixas dolorosas; compreendeu então que o
defeito estava no próprio recipiente, e que esse defeito corrompia tudo de bom
que fosse colocado de fora em seu interior (Lucrécio).
O nosso
apetite é indeciso e incerto: não sabe conservar coisa alguma, nem desfrutar
nada da maneira certa. O homem, julgando que isso seja um defeito dessas coisas,
acumula e alimenta-se de outras coisas que ele não sabe e não conhece, em que
aplica os seus desejos e esperanças, honrando-as e reverenciando-as; como diz
César: Por um vício comum da natureza, acontece termos mais confiança e
também mais temor em relação às coisas que não vimos e que estão ocultas e desconhecidas.”
Michel de Montaigne, in Ensaios
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