Ilustração: Natalia Forcat
Meu
avô era aquilo que os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um
perdedor. Nada do que fazia dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a
pequena fortuna que recebera de herança; fizera um investimento maluco qualquer
e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de tudo para sobreviver; foi
comerciante, foi corretor de imóveis, foi vendedor de seguros, foi motorista
... Até a astrologia experimentou, mas teve de encerrar a carreira depois que
uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena
rua. De desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele
casou. Com a mulher ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência
admirável, e encarava com bom humor as extravagâncias e os insucessos do
marido. Tiveram oito filhos porque meu avô, além de tudo, considerava-se um
patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer. A família sobrevivia,
principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas clientes na
alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava
arranjando um bico aqui outro ali.
Um
dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante
relativamente próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria
diante da loja, com o traje vermelho característico, convidando os transeuntes
a entrar no estabelecimento. A princípio, vovô rejeitou a proposta, com
indignação, inclusive: o que é que você pensa que sou, posso ser pobre mas
tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa nenhuma. Mas aí o homem
mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco. Era mais do que
lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria oferecer
um Natal decente à tribo. Aceitou.
E
se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo,
rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba,
precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era
igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só
lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha.
Esta
semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes,
e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto,
cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de
renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada
no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros
presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.
Ninguém
lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito.
Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da
encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na
cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E
vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria.
Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia
de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa
coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Polo Norte;
teria, portanto, de usar roupas quentes.
—
Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse
papel só de camiseta?
Pergunta
retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria
aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não
será agora que as coisas mudarão.
Vovó
tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido
uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por
causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a
lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais
irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por
qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada. Vovô já era um
homem idoso, beirava os setenta, e a sua saúde não era das melhores; ela temia
que aquilo acabasse prejudicando o homem. Chegou a sugerir que ele parasse de
vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não podem se aposentar as pessoas
que fazem o papel de Papai Noel? Uma idéia que vovô repelia, indignado. Não era
homem de abandonar a luta.
Mas
os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um
acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado
era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia
coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a
lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:
—
Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.
Era
a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não:
afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu
papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro.
—
Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa,
continuou:
—
Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que
responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais
velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
Meu
pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento
fantasioso. De modo que não hesitou:
—
Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a
fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e,
pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu
os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil
sorriso.
—
Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.
Meu
pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse
pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava
falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:
—
Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?
Não
quero ser mais o Papai Noel. Não aguento aquela roupa, sabe? Não aguento. Você,
que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas
gostarão disso. E eu poderei morrer em paz.
Calou-se,
exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a
custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez
para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.
A
melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois
faleceu.
A
consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os
jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma
das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
O
pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como
ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura
talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O
cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma
família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe
importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança
de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a
casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E
foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma
roupa de vovô.
Agora,
já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me
homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas
preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo
passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa
usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda
inteiramente branca.
Como vovô, papai foi progressivamente
detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela mesma razão: a roupa é quente
demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante
que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de
vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e
conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa
vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma
experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o
calor.
Moacyr
Scliar, in revista e, editada pelo SESC - SP, em
dezembro de 2003, nº 06, ano 10.
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