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Pois
é, meu amigo, se você está lendo essas linhas, tenho a impressão de que não
poderei ouvir sua voz de barítono libanês. Morrer não é difícil. Difícil é
ficar aqui deitado, com algodão nos ouvidos, tentando adivinhar o que estão
falando em volta de mim. Por motivos óbvios, também não sou capaz de fazer
leituras labiais e essas flores me dão uma alergia danada. O único sentido que
me resta é o tato. Portanto, se não for muito assustador, coloque a mão no meu
ombro para que eu possa perceber o timbre de suas palavras.
Pra começar, diga aos presentes que não
estou de acordo com isso. Por mim, a festa não teria hora pra acabar. Quem
inventou a morte não sabe o que é viver. Quem inventou a morte não sabe o que é
a brisa lateral da praia do Pepê, o chope com os amigos do colégio, o futebol
no domingo, a pele feminina molhada de suor. Quem inventou a morte não conhece
a poesia do Rilke, os romances do Saramago, as sonatas de Chopin, a guitarra do
Hendrix, os quadros do Portinari, o cinema de Fellini. Quem inventou a morte é
um ignorante. Um tremendo ignorante.
Não sei se fica bem confessar, mas tenho
alguns arrependimentos. Quais são, mesmo? Deixe-me ver! Tá difícil de lembrar.
Memória de morto não é das melhores, meu amigo. Peça ao padre aí do lado pra me
perdoar a crédito ou AD HOC, sei lá. Também não me incomodo se houver um
rabino, um pastor ou um pai de santo. Na dúvida, prefiro estar de bem com
todos. Shalom, amém e saravá. Ah, lembrei! Sabe uma coisa da qual me
arrependo? Filtro solar. Passei a vida toda usando esse creme pastoso e agora
pergunto: pra quê? Olha só a minha cor! Podia, ao menos, restar um bronze nessa
face amarela. Vou te contar uma coisa, meu amigo: na próxima encarnação, não
usarei filtro solar nem morto.
Por falar nisso – na reencarnação, não no
filtro – quero dizer que sou brasileiro e não desisto nunca. Portanto, eu
acredito. Se houver uma maternidade por perto, corre pra lá. O primeiro bebê
que chorar fora do tom e piscar pra enfermeira tem altíssima probabilidade de
ter recebido este espírito cambaleante, cujas passagens pela Terra devem se
repetir muitas vezes antes de alcançar a iluminação. Pelo menos, é o que eu
espero. A luz pode ficar para o fim do túnel, não tenho pressa. Quero ser
repetente nessa escola, meu amigo.
A verdade é que, se pudesse nascer de
novo e me dessem opção, escolheria a mesma família, os mesmos amigos, a mesma
profissão. Nada me dá mais orgulho do que ser filho de Seu Antonio e Dona
Josefa. O mais próximo que estive da dignidade devo a esses dois imigrantes,
cuja saga ultramarina merecia um filme. Eles também me deram essa baixinha que
está ao seu lado com meus sobrinhos. Aliás, meu amigo, se alguém quiser te
proibir de ler esta carta, fale com ela. Aposta a alma que nem um pelotão do
Bope a impediria de realizar o desejo do irmão.
Mas vamos voltar às instruções. Dê uma
olhada em volta. É possível que você reconheça algumas faces morenas – ou
loiras, ou ruivas, ou as diversas combinações juntas. Todas foram importantes.
Faça chegar essa informação a cada uma, sem restrição. E, se entre elas,
estiver a mulher que eu ainda amo, diga que é tudo mentira, que nunca houve
amor, que nunca houve festa. Diga que ela precisa botar o melhor vestido, o
melhor sapato, o melhor batom. E sair pela avenida na quinta marcha. Diga que
precisa sorrir, que precisa dançar, que precisa correr. Não a deixe perder
tempo, nem se perder, no tempo.
Os bons companheiros dessa jornada
alunos, amigos, leitores – talvez estejam por perto. Eles foram a razão de
tudo. Agradeça por mim. Se conseguir juntar meia dúzia, você já terá número
suficiente para segurar nas alças. Mas, antes, não se esqueça de me cobrir com
a bandeira do meu time e de colocar um exemplar do Cervantes para me fazer
companhia. Na dúvida, deixe também um telefone celular com a bateria carregada.
Prometo não ligar.
Um pouco antes do fechamento, faça um
círculo e leia esta carta. Use sua melhor entonação, aquela que você aprendeu
nas aulas do Tablado. Encha o pulmão de ar, respire e solte o tom grave de cada
sílaba. Confio no seu talento. Você foi e sempre será o melhor de nós. Ninguém
pode negar isso.
Não tenho medo, meu amigo.
Não é a morte que me assusta, é o
esquecimento.
Mas enquanto houver um leitor, ainda
terei a esperança de ser lembrado. Uma parte de mim foi literatura. A outra
parte são vocês.
E que fique bem claro: a melhor parte são
vocês.
Sempre, a melhor parte foram vocês.
Felipe
Pena, in beijo na testa é pior do que separação
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