Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava
bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e
mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via
mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da
terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me
dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não
podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo
sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar.
Procurei acalmar a senhora.
Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com
uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando
que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única
providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se
abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito
grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior
eficiência na sua luta contra a morte.
Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora.
Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de
lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que
eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo
estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto
lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar
ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e
co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem
visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser
de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando.
Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos
atributos de força e proteção.
Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com
biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos
ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às
vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da
aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.
Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é
uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice
do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas
palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava
sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela
se deixasse matar sem reagir.
A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela
senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas
malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então
a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto
de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de
alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou
imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra
todos, estava como adormecida.
O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem
escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma
garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem
dúvida lhe fazia bem.
Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita,
um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais
trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e
fraco assunto.
E de repente me veio a ideia de que na verdade não podíamos
ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu
podia morrer.
Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá
embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua
vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um
avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com
trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá,
sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe
mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor
que olha o nevoeiro e pensa na morte.
Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da
morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces
ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um
torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não
existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom
sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um
nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.
Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que
não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar;
que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha
alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de
nevoeiro.
A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a
me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se
conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente:
podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer
arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0
encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de
cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.
Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as
mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza
humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a ideia
da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A
morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor,
a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um
corpo de mulher moça.
Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre
de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas.
Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver
uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei
as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor
de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a
cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse
afinal a tomar alguma providência.
Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente
para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra
avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo
perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos
salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era
apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão,
o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em
todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com
força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no
mundo.
No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha
vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de
despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a
esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser
cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia
descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que
todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo;
e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa.
"Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se,
com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer,
acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho -
que devia permanecer um estranho.
Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim
que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que
de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.
Quando se retiravam, a
senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar
coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia
notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca
mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a
própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.
Rubem Braga
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