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Se
você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do
instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no
Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor
é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem
carteira com número, e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é
identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento
— tudo é número.
Se
é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade,
também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia
Brasileira de Letras tem o número da cadeira.
É
por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das
coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de
Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se
você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também. Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um
número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número.
Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações também recebe um, como
acionista de uma companhia. E claro que você é um número no recenseamento. Se é
católico recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é
numerado. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a gente morre, no
jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
Nós
não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto
também é número.
Uma
amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o
filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha número 10.
Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida
porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número.
Nós somos culpados.
Se
há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa
metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica. Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-mesmo é apenas o
si-mesmo.
E
Deus não é número.
Vamos ser gente, por favor. Nossa
sociedade está nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco
exposto ao sol. Meu número íntimo é 9. Só. 8. Só. 7. Só. Sem somá-los nem
transformá-los em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando com um
número? Não, a intimidade não deixa. Vejam, tentei várias vezes na vida não ter
número e não escapei. O que faz com que precisemos de muito carinho, de nome
próprio, de genuinidade. Vamos amar que amor não tem número. Ou tem?
Clarice
Lispector, in Crônicas no Jornal do Brasil (1971)
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