Temos
várias espécies de peixe neste mundo, havendo o peixe que come lama, o peixe
que come baratas do molhado, o peixe que vive tomando sopa fazendo chupações na
água, o peixe que, quando vê a fêmea grávida pondo ovos, não pode se conter e
com agitações do rabo lava a água de esporras a torto e a direito ficando a
água leitosa, temos o peixe que persegue os metais brilhantes, umas cavalas que
pulam para fora bem como tainhas, umas corvinas quase que atômicas, temos por
exemplo o niquim, conhecido por todas as orlas do Recôncavo, o qual peixe não
somente fuma cigarros e cigarrilhas, preferindo a tálvis e o continental sem
filtro, hoje em falta, mas também ferreia pior do que uma arraia a pessoa que
futuca suas partes, rendendo febre e calafrios, porventura caganeiras, mormente
frios e tantas coisas, temos os peixes tiburones e cações, que nunca podem
parar de nadar para não morrer afogados.
É
engraçado que eu entenda tanto de peixe e quase não pegue, mas entendo. Os
peixes miúdos de moqueca são: o carapicu, o garapau, o chicharro e a sardinha.
Entremeados, podemos ferrar o baiacu e o barrigame-dói, o qual o primeiro é
venenoso e o segundo causa bostas soltas e cólicas. De uma ponte igual a essa,
que já foi bastante melhor, podemos esperar também peixes de mais de palmo,
porém menos de dois, que por aqui passam, dependendo do que diz o rei dos
peixes, dependendo de uma coisa e outra. Um budião, um cabeçudo, um frade, um
barbeiro. Pode ser um robalo ou uma agulha ou ainda uma moréia, isto
dificilmente. O bom da pesca do peixe miúdo é quando estão mordendo
verdadeiramente e sentamos na rampa ou então vamos esfriando as virilhas nestas
águas de agosto e ficamos satisfeitos com aquela expedição de pescaria e nada
mais desejamos da vida.
Ou
quando estamos como assim nesta canoa, porém nada mordendo, somente carrapatos.
Nesses peixes miúdos de moqueca, esquecia eu de mencionar o carrapato, que não
aparece muito a não ser em certas épocas, devendo ter recebido o nome de
carrapato justamente por ser uma completa infernação, como os carrapatos do ar.
Notadamente porque esse peixe carrapato tem a boca mais do que descomunal para
o tamanho, de modo que botamos um anzol para peixes mais fundos, digamos um
vermelho, um olho-de-boi, um peixe-tapa, uma coisa decente, quando que me vem
lá de baixo, parecendo uma borboletinha pendurada na ponta da linha, um
carrapato. Revolta a pessoa.
E
estou eu colocando uma linha de náilon que me veio de Salvador por intermédio
de Luiz Cuiúba, que me traz essa linha verde e grossa, com dois chumbos de
cunha e anzóis presos por uma espécie de rosca de arame, linha esta que não me
dá confiança, agora se vendo que é especializada em carrapatos. Mas temos uma
vazante despreocupada, vem aí setembro com suas arraias no céu e, com esses
dois punhados de camarão miúdo que Sete Ratos me deu, eu amarro a canoa nos
restos da torre de petróleo e solto a linha pelos bordos, que não vou me dar ao
desfrute de rodar essa linha esquisita por cima da cabeça como é o certo, pode
ser que alguém me veja. Daqui diviso os fundos da Matriz e uns meninos como
formiguinhas escorregando nas areias descarregadas pelos saveiros, mas o
barulho deles chega a mim depois da vista e assim os gritos deles parecem uns
rabos compridos. Temos uma carteira quase cheia de cigarros; uma moringa,
fresca, fresca; meia quartinha de batida de limão; estamos sem cueca, a água,
se não fosse a correnteza da vazante, era mesmo um espelho; não falta nada e
então botamos o chapéu um pouco em cima do nariz, ajeitamos o corpo na popa,
enrolamos a linha no tornozelo e quedamos, pensando na vida.
Nisso
começa o carrapato, que no princípio tive na conta de baiacus ladrões. Quem
está com dois anzóis dos grandes, pegou isca de graça e a mulher já mariscou a
comida do meio-dia pode ser imaginado que não vai dar importância a beliscão
leve na linha. Nem leve nem pesado. Se quiser ferrar, ferre, se não quiser não
ferre. Isso toda vez eu penso, como todo mundo que tem juízo, mas não tem esse
santo que consiga ficar com aqueles puxavantes no apeador sem se mexer e tomar
uma providência. Estamos sabendo: é um desgraçado de um baiacu. Se for, havendo
ele dado todo esse trabalho, procuremos arrancar o anzol que o miserável
engole e estropia e trataremos de coçar a barriga dele e, quando inchar,
dar-lhe um pipoco, pisando com o calcanhar. Mas como de fato não é um baiacu,
mas um carrapato subdesenvolvido, um carrapatinho de merda, com mais boca do
que qualquer outra coisa, boca essa assoberbando um belo anzol preparado pelo
menos para um dentão, não se pode fazer nada. Um carrapato desses a pessoa come
com uma exclusiva dentada com muito espaço de sobra, se valesse a pena gastar
fogo com um infeliz desses. Vai daí, carrapato na poça d'água do fundo da canoa
e, dessa hora em diante, um carrapato por segundo mordendo o anzol, uma
azucrinarão completa. Foi ficando aquela pilha de carrapatinhos no fundo da
canoa e eu pensei que então não era eu quem ia aparecer com eles em casa,
porque com certeza iam perguntar se eu tinha catado as costas de um jegue velho
e nem gato ia querer comer aquilo. Pode ser que essa linha de Cuiúba tenha
especialidade mesmo em carrapato, pode ser qualquer coisa, mas chega a falta de
vergonha ficar aqui fisgando esses carrapatos, de maneira que só podemos abrir
essa quartinha, retirar o anzol da água, verificar se vale a pena remar até o
pesqueiro de Paparrão nesta soalheira, pensar que pressa é essa que o mundo não
vai acabar, e ficar mamando na quartinha, viva a fruta limão, que é curativa.
Nisto
que o silêncio aumenta e, pelo lado, eu sinto que tem alguma coisa em pé pelas
biribas da torre velha e eu não tinha visto nada antes, não podendo também ser
da aguardente, pois que muito mal tomei dois goles. Ele estava segurando uma
biriba coberta de ostras com a mão direita, em pé numa escora, com as calças
arregaçadas, um chapéu velho e um suspensório por cima da camisa.
—
Ai égua! — disse eu. — Veio nadando e está enxuto?
—
Eu não vim nadando — disse ele. — Muito peixe?
—
Carrapato miúdo.
—
Olhe ali — disse ele, mostrando um rebrilho na água mais para o lado da Ilha do
Medo. — Peixe.
Ora,
uma manta de azeiteiras vem vindo bendodela, costeando o perau. É conhecida
porque quebra a água numa porção de pedacinhos pela flor e aquilo vai igual a
muitas lâminas, bordejando e brilhando. Mas dessas azeiteiras, como as peixas
chamadas solteiras, não se pode esperar que mordam anzol, nem mesmo morram de
bomba.
—
Azeiteira — disse eu. — Só mesmo uma bela rede. E mais canoa e mais braço.
—
Mas eles ficam pulando — disse ele, que tinha um sorriso entusiasmado,
possivelmente porque era difícil não perceber que a água em cima como que era o
aço de um espelho, só que aço mole como o do termômetro, e então cada peixe que
subia era um orador. Aí eu disse, meu compadre, se vosmecê botar um anzol e uma
dessas meninas gordurentas morder esse tal anzol, eu dou uma festa para você no
hotel — ainda que mal pergunte, como é a sua graça?
Assim
levamos um certo tempo, porque ele se encabulou, me afirmando que não apreciava
mentir, razão por que preferia não se apresentar, mas eu disse que não botava
na minha canoa aquele de quem não saiba o nome e então ficasse ele ali o resto
da manhã, a tarde e a noite pendurado nas biribas, esperando Deus dar bom
tempo. Mas que coisa interessante, disse ele dando um suspiro, isso que você
falou.
—
É o seguinte — disse ele, dando outro suspiro. — É porque eu sou Deus.
Ora,
ora me veja-me. Mas foi o que ele disse e os carrapatinhos, que já gostam de
fazer corrote-corrote com a garganta quando a gente tira a linha da água
ficaram muitíssimo assanhados.
—
É mais o seguinte — continuou ele, com a expressão de quem está um pouco
enfadado. — Está vendo aqui? Não tem nada. Está vendo alguma coisa aqui? Nada!
Muito bem, daqui eu vou tirar uma porção de linhas e jogar no meio dessas
azeiteiras. E dito e feito, mais ligeiro que o trovão, botou os braços para
cima e tome tudo quanto foi tipo de linha saindo pelos dedos dele, parecia um
arco-íris. Ele aí ficou todo monarca, olhando para mim com a cara de quem eu
não sou nem principiante em peixe e pesca. Mas o que aconteceu? Aconteceu que,
na mesma hora, cada um dos anzóis que ele botou foi mordido por um carrapato e,
quando ele puxou, foi aquela carrapatada no meio da canoa. Eu fiz: quá-quá-quá,
não está vendo tu que temos somente carrapatos? Carrapato, carrapato, disse eu,
está vendo a cara do besta? Ele, porém, se retou.
—
Não se abra, não — disse ele — que eu mando o peixe lhe dar porrada.
—
Porrada dada, porrada respostada — disse eu.
Para que eu disse isto, amigo, porque me
saiu um mero que não tinha mais medida, saiu esse mero de junto assim da
biriba, dando um pulo como somente cavacos dão e me passou uma rabanada na cara
que minha cara ficou vermelha dois dias depois disto.
Conto completo aqui.
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