Olhou
distraidamente para o relógio e deu um pulo na cadeira: Ih, cacilda, quatro e
meia da manhã! Mais um pouco e encontraria a mulher acordada.
Enquanto
a noite durasse, nada a temer. Mas não podia se deixar se apanhar na rua quando
a claridade do céu começava a anunciar o novo dia. A partir de então a mulher
acordava a qualquer barulhinho. Houve um dia, por exemplo, em que mal havia
tirado a roupa, ouviu a voz dela lá na cama, você vai sair a esta hora? Não
teve remédio senão dizer que sim, tinha de estar bem cedo no escritório. E
tornou a sair, foi mesmo para o escritório, dormir no sofá da sala de espera o
restinho da manhã.
-
Gente, eu tenho de me mandar.
Chamou o garçom,
pagou sua conta, despediu-se dos amigos que, já bêbados, nem deram por sua
partida. Meio bebido, ele próprio, na rua firmou-se sobre as pernas e fez sinal
para um táxi que passava.
Alguém
mais se adiantou e acenou para o mesmo táxi. Era uma mulher que também acabava
de sair da boate.
Pronto,
pensou rápido: se perco este táxi, lá vai minha última chance de chegar ainda
de noite.
Quando
o táxi parou, fingiu que não via a mulher e avançou para abrir a porta. Ela
também avançou, tocou-lhe o braço:
-
Por favor, estou com pressa!
A voz, aflita,
era educada e insinuante. Então ele reparou que era uma mulher bonita. Ainda
assim resistiu: pediu-lhe também de maneira educada que o desculpasse, mas sua
pressa era maior. A menos que seguissem juntos no táxi, e ele a deixaria no
caminho, se é que iam para o mesmo lado. Vacilaram ambos:
-
Se não se incomoda...
-
Incômodo nenhum.
-
Bem, nesse caso...
Estavam nisso
quando surgiu um grandalhão, de terno xadrez e segurou a mulher pelo braço. Ignorou
a presença dele e falou com a voz carregada:
-
Eu agorra te matarr.
Notou que o homem
tinha à ilharga algo avolumado sob o paletó, só podia ser revolver. E a manopla
já avançando para sacá-lo.
-
Não faça isso! - gritou, com a mão espalmada no ar, como um guarda de trânsito:
- O senhor não pode fazer uma coisa dessas!
-
O homem se voltou, como se o visse só então:
-
Não poderr porr quê? Quem é senhorr?
Agora
era distrair o gringo e tomar o táxi:
- Tenho mulher e
filhos em casa me esperando, e o senhor quer me envolver num crime?
-
Sernhor não saberr que esta mulherr fazerr comigo.
-
Seja o que for, não vá matá-la, pelo menos na minha vista.
Mesmo que fosse
embora, estaria envolvido: o chofer do táxi seria testemunha. E a mulher não
tinha a menor reação, ia morrer sem um pio. O jeito era ficar:
- Do you speak
English?
- Eu serr alemon.
-
Neste caso vai em português mesmo. Vamos tomar um drinque.
Dispensou
o táxi e conduziu ambos pelo braço de volta à boate.
Era dia claro
quando se viu noutro táxi, em companhia da mulher e do alemão, reconciliados
graças à sua intervenção. A ideia era deixá-la primeiro, para evitar que o
homem, sozinho com ela, tivesse novo ímpeto homicida.
Quando
ela saltou, o alemão quis descer também, foi um custo contê-lo:
-
Você prometeu, Fritz.
Ela se foi, sã e
salva, e os dois seguiram viagem. Ele convidou o alemão para tomar o café da
manhã em sua casa - única maneira de sua mulher acreditar naquela história:
- Quero que você conheça minha mulher.
Esta sim, é de matar.
Fernando
Sabino, in O gato sou eu
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