Conto
biográfico baseado em mentiras reais
Mestre Picasso das Virgens costumava tomar umas
lamboradas de cana no meio da madrugada, no Beco das Facas, junto ao Mercado do
Peixe. Entrava sem dar palavra, erguia a mão, o dedo indicador estendido, no
que Zé Maria, o dono do bar, já lhe servia aquela dose de Rainha das antigas,
com respeitáveis 53 graus de teor alcoólico.
A primeira, ele virava para espalhar o sangue e
juntar as ideias, como se fosse na veia. Da segunda em diante, degustava junto
ao estranho tira-gosto de pimenta malagueta cortada em rodelas pelo próprio Zé,
o dono do estabelecimento, que conhecia as manias do freguês e amigo de longos
anos. Um gole, uma rodela de pimenta, nenhuma careta.
Somente depois da quarta ou quinta, Picasso
relaxava e se dirigia individualmente aos presentes.
- Bom-dia, Fulano!
- Bom-dia, Beltrano!
- Bom-dia, Sicrano!
Aí, calava-se, contando com o respeito dos amigos
circunstanciais que evitavam importuná-lo com perguntas vagas ou respostas que
não eram pedidas.
Nasceu no Santo Antônio, filho de Maria Enorme e
Antônio das Virgens, e, diferente do que muitos ainda hoje imaginam, não foi a
mãe, dona de uma badalada casa de recursos nos tempos áureos do Alto do Louvor,
quem resolveu dar ao filho o nome Pablo Diego José Francisco de Paula Juan
Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y
Picasso... das Virgens.
A escolha adveio do pai, cafetão doido por
rapariga, dinheiro e artes plásticas. Nem precisa dizer, o espanhol era seu
ídolo. Não à toa, as paredes do cabaré de Maria Enorme eram ornamentadas com
réplicas de obras das fases azul, rosa, africana, analítica, cubista sintética
e surrealista do pintor ídolo de seu, digamos, marido.
Havia, aqui e acolá, reproduções de cartazes de
Toulouse-Lautrec, para garantir a sofisticação do ambiente com toques de Art
Nouveau. Lautrec chegou a disputar a denominação do menino. A mãe
interferiu apenas para dizer que, se era para batizar a criança com palavra
esquisita, que fosse Picasso, de maior simbologia e enquadramento temático.
O herói cresceu entre prostitutas, rufiões e outras
figuras do alto meretrício de Mossoró. Não caiu na gandaia nem se deixou
seduzir pela noite porque não quis. Tornou-se mestre de obras dos bons por
esforço próprio, altamente requisitado e recomendado, a ponto de o ofício
tornar-se prenome. Seus únicos pontos fracos eram a aguardente que o arrastava
ao beco e um temperamentozinho polido que nem macambira.
Fazia relativo sucesso com a mulherada, a começar
pela alcunha. A maioria, sem compreender a homenagem ao gênio de Málaga,
desejava conferir se o instrumento correspondia à propaganda. Pelo que se sabe,
nunca houve queixas. Seja pelas proporções ou pela qualidade da mexida,
sobravam-lhe suspiros apaixonados.
Tudo isso fazia de Mestre Picasso um indivíduo
confiante, mesmo antes do terceiro engasga-gato, quando qualquer sujeito
alcança as fronteiras da alegria. Quem o estragou, deixando-o daquele jeito,
macambúzio, foi Mocinha, quenga independente que prestava assistência
domiciliar aos meninos do Nova Betânia.
Mocinha amoleceu Picasso e depois o abandonou.
Fugiu para a Inglaterra, a desalmada, com um alemão de sotaque paraibano que
conheceu numa praia entre Icapuí e Canoa Quebrada.
Naquela manhã, Picasso tinha nas mãos motivos de
sobra para beber até se destroncar. No envelope com o carimbo do Royal
Mail, os correios ingleses, o convite do casamento entre Mocinha e Thomas
Kuderrã da Silva, que a megera enviara de sacanagem, como golpe de
misericórdia.
E funcionou, pois Mestre Picasso sucumbiu no
democrático balcão de Zé Maria instantes depois de erguer o copo de Rainha e
esfolar a garganta no berro ouvido até na lanchonete de Zé Leão:
- God save the queennnnnn! Aquela vagabuuuuuuunda!
Ninguém
entendeu o francês, mas todos responderam ao brinde que inaugurou a manhã e deu
prumo ao dia no Beco das Facas.
Cid Augusto, in cidaugusto.blogspot.com.br
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