Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome
com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de
explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a
verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.
A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro
lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos
documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da
tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as
atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.
Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão
arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em
condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor,
que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não
foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A
história é mais inverossímil.
Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo
escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma
pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural
é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por
ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há
maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc...
As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas,
de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação,
que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.
O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A
pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em
perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua
como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado,
apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo
andar de uma construção.
Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões
secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo,
se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de
prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa,
sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze,
mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos
principais.
Penetrando mais no estudo de todas essas superstições,
pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com
as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na
ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as
pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre
pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem
algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas
outras coisas, só pelo medo das suas consequências ocultas.
Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos
seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais,
chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto
de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o
simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma
proximidade de vidas, em tempos imemoriais.
E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência,
umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos,
com todas as suas inesperadas trajetórias.
E há os que leem nas
linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado,
o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa
estrela...
Crônica completa aqui.
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