Esta
noite... esta chuva... estas reticências. Sei lá.
Quem seria capaz
de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer
lembrar, o rosto?
Quem
seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o
inimigo, e dizer:
—
Estou me sentindo assim, assim, assim...
A
humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe
onde estão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os
deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das
jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens
raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.
Nesta
noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem
importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu
nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria
ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido
como sua nudez (dela). Não há diferença.
E
por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para
apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e
você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano.
Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em
notícia: "Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família
Brasileira, na pessoa de um sócio do Country".
Há
poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta
que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das
escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente
piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte,
mesmo em combate, é burlesca.
Uma
pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia
discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido
um tempo enorme.
Ontem
à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que,
pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos
e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:
—
Que é que houve? O senhor está mais velho?
Tirei
os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:
—
O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.
Tinha
pensado que, sem os óculos...
Não
estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo,
simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta
chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado,
as mais tristes.
Só há uma vantagem na solidão: poder ir
ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem
sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.
Antônio
Maria, in Com vocês, Antônio Maria
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