domingo, 2 de junho de 2013

O homem que dormiu no ponto


Qian-Qnei, voltando de madrugada, depois de um mês de viagem, teve que bater violentamente na porta de casa até que a mulher o atendesse.
Caindo de cansaço, e irritado pela aparente desatenção, o homem esculhambou a mulher e, apesar de morto de fome, resolveu se deitar sem comer. A mulher, também zangada, virou pro lado na cama e, quando ele acendeu a luz, gritou: "Apaga essa porcaria que eu quero dormir!".
O homem apagou mas, apesar do escuro, viu a ponta de dois tamancos holandeses, vermelhos, aparecendo suspeitamente embaixo da cama. Envenenado de ódio, sentiu o sangue lhe subir à cabeça, pegou silenciosamente sua cimitarra (1), pronto para um ato de violência, quando se lembrou da lição existencial de seu mestre de filosofia, Ku-En-Puí: "Pense dez vezes e meia antes de uma ação que possa ser fatal".
Qian-Qnei se acalmou ao lembrar o conselho e refletiu lá consigo próprio: "Dormirei um sono tranquilo, e amanhã, mais calmo, ajusto contas com meu amargo destino". Mas, assim que Qian-Qne dormiu e começou a roncar, a mulher, sabiamente, trocou o par de tamancos vermelhos que o amante holandês (2) tinha abandonado no pavor da fuga, e botou no seu lugar um par de borzeguins dourados, do marido.
"Ah!", exclamou Qian-Qnie alegremente, ao acordar de manhã. "Extraordinário! Bastou passar a raiva, pra que eu visse melhor. Como é que eu fui confundir meus melhores borzeguins dourados com um par de tamancos vermelhos? Devia estar mesmo muito fora de mim. Se agisse precipitadamente, ontem à noite, teria ficado completamente ridicularizado diante de minha querida mulher".

(1) Mongol usa cimitarra?
(2) Amante holandês na Mongólia? Eta, globalização!
MORAL: DEVEMOS SEMPRE AGIR ÀS CLARAS.
Millôr Fernandes, in Fábulas Fabulosas

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