Ele
não era mais doido do que as outras pessoas do mundo, mas as outras pessoas do
mundo insistiam em dizer que ele era doido.
Depois
que se apaixonou por uma garrafa de plástico de se carregar na bicicleta e
passou a andar sempre com ela pendurada na cintura, virou o Doido da Garrafa.
O
Doido da Garrafa fazia passarinhos de papel como ninguém, mas era especialista
mesmo em construir barquinhos com palitos. Batizava cada barco com um nome de
mulher e, enquanto estava trabalhando nele, morria de amores pela dona
imaginária do nome. Depois ia esquecendo uma por uma, todas elas, com exceção
de Olívia, uma nau antiga que levou dezessete dias para ser construída.
Batucava
muito bem e vivia inventando, de improviso, músicas especialmente compostas
para toda e qualquer finalidade, nos mais variados gêneros. Uai aí aquela da
mulher de blusa verde atravessando a rua apressada, e o Doido da Garrafa
imediatamente compunha um samba, uma valsa, um rock, um rap, um blues,
dependendo da mulher de blusa verde, do atravessando, da rua e do apressada.
Geralmente ficava uma obra-prima.
Gostava
muito de observar as pessoas na rua, do cheiro de café, de cantar e de ouvir
música. Não gostava muito do fato de ter pernas, mas acabou se acostumando com
elas. De cabelo ele gostava. Em compensação, tinha verdadeiro horror a
multidão, bermudão, tubarão, ladrão, camburão, bajulação, afetação, dança de
salão, falta de educação e à palavra bife.
Escrevia
cartas para ninguém, umas em prosa, outras em poesia, como mero exercício de
estilo.
Tinha
mania de dar entrevistas para o vento e já sabia a resposta de qualquer
pergunta que porventura alguém pudesse lhe fazer um dia.
Ajudava
o dicionário a explicar as coisas inventando palavras necessárias, como dorinfinita.
Adorava
álgebra, mas tinha particular antipatia por trigonometria, pois não encontrava
nenhum motivo para se pegar pedaços de triângulos e fazer contas tão difíceis
com eles.
Conhecia
mitologia a fundo.
Tinha
angústia matinal, uma depressão no meio da tarde que ele chamava de cinco horas,
porque era a hora que ela aparecia, e uma insônia crônica a quem chamava
carinhosamente de Proserpina.
Sentia
uma paixão azul dentro do peito, desde criança, sempre que olhava o mar e
orgulhava-se muito disso.
Acreditava
no amor, mas tinha vergonha da frase.
Às
vezes falava sozinho. Preferia tristeza à agonia.
Todas
as noites, entre oito e dez e meia, era visto andando de um lado para o outro
da rua, método que tinha inventado para acabar de vez com a preocupação de
fazer a volta de repente, quando achava que já tinha andado o suficiente.
(Preferia que ninguém percebesse que ele não tinha para onde ir.) Enquanto
andava, repetia dentro da cabeça incessantemente a palavra ecumênico sem ter a
menor ideia da razão pela qual fazia isso.
Durante
o dia o Doido da Garrafa trabalhava numa multinacional, era sujeito bem visto,
supervisor de departamento, ganhava um bom salário e gratificações que
entregava para a mulher aplicar em fundos de investimento.
No
fim do ano ia trocar de carro.
Era
excelente chefe de família.
Não era mais doido do que as outras
pessoas do mundo, mas sempre que ele passava as outras pessoas do mundo
pensavam, lá vai o Doido da Garrafa, e assim se esqueciam das suas próprias
garrafas um pouquinho.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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