"É
preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito
diferentes pela sua natureza e pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um
sentimento natural que leva todo o animal a velar pela sua própria conservação,
e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a
humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo,
factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de
si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem
mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra.
Bem
entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de
natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a
si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo
que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é
possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz
de fazer possa germinar na sua alma.
Pela mesma razão, esse homem não poderia
ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de
alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não
o mal, que constitui a ofensa, homens que não se sabem apreciar nem se comparar
podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais
se ofenderem reciprocamente. Numa palavra, cada homem, vendo os seus
semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a
presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens
senão como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de
despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso."
Jean-Jacques
Rousseau, in Discurso Sobre a Origem da Desigualdade
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