"Talvez
seja possível amar um homem ainda antes de o conhecer, por causa de um livro,
de um poema sublinhado, de uma casa, de uma música. Lembrou-se vagamente de que
em tempos procurara o poema, era de Stevenson, "My house", "my
house, I say". Era muito tarde, quase noite fechada, e Katharine Hepburn
tocava no escuro a terceira sinfonia de Brahms, e George chegava a correr, com
medo de encontrar um fantasma.
Estava
frio, muito frio, mas de manhã fizera um pouco de sol, ela levantara-se cedo,
como sempre, gostava das manhãs, escolhera um vestido leve, um velho blusão de
ganga, a pulseira de aço com pedras semipreciosas, o seu perfume, Hugo Boss,
passara os dedos pelo cabelo curto em frente do espelho, os seus olhos estavam
muito verdes e tinham um ar assustado. Tomara o pequeno-almoço no café do
costume, folheara o bloco de notas onde tomava apontamentos para um livro e ao
sair atirara-o para o cesto dos papéis. Passeara longamente, as mãos geladas
metidas nos bolsos do blusão, a cidade estava azul, o mar, os jacarandás, os
lilases, comprou um ramo de lírios azuis no mercado, alguma fruta, entrou num
supermercado para comprar pão e uma garrafa de vinho, aquele estranho
ascetismo, algo nela recusava qualquer comida mais elaborada, só conseguia
comer pão, um pouco de queijo, fruta.
Quando
chegou a casa começava a chover, correu pelas escadas acima e fechou a porta
atrás de si, agora tinha medo da chuva, também tinha medo do escuro, com uma
sensação de horror afastou as cortinas e ficou a olhar para a varanda, os vasos
de plantas, uma camisola que deixara a secar, os pássaros que cantavam nas
árvores próximas e não pareciam importar-se com a chuva. Respirou fundo e foi
pôr as flores numa jarra, trocou o vestido por um roupão azul-forte e calçou
umas peúgas, sentou-se na sala sentindo a presença dos objectos, os livros nas
estantes, as pedras, o quadro sem título pintado por um amigo, a reprodução de
um Bonnard, uma mulher na penumbra. Colada numa estante estava a página de uma
revista de cinema, uma foto a preto e branco de Daniel Auteuil e Emmanuelle
Béart, talvez do tempo em que ainda se amavam. Eles odiavam-se quando fizeram
"Un Coeur en Hiver", o ódio dava ainda mais força ao filme,
lembrou-se deles correndo debaixo da chuva. Mas ela não queria chuva, procurou
outro filme para pôr no vídeo e aninhou-se no sofá. Katharine Hepburn sentada
num alpendre com Fred MacMurray, o ramo de violetas que ela usava no baile, as violetas
que roubara no parque, e as rosas mortas, uma rosa morta pelos teus
pensamentos. Foi buscar uma fatia de pão e a garrafa de vinho à cozinha antes
de começar a ver "The Philadelphia Story", Katharine Hepburn entre
Cary Grant e James Stewart, não sou uma deusa, sou uma mulher de carne e osso,
"there is a magnificence in you, Tracy, you're lit from within, like
fires, and holocausts". Estava muito escuro lá fora, bebeu um copo de
vinho e escolheu o último filme, "Undercurrent", sempre gostara de
contos de fadas, e aquele era uma estranha mistura de Cinderela e a Bela e o
Monstro, e sempre tivera um fraco por Robert Mitchum, talvez seja possível amar
um homem por causa de um livro, de um poema, de uma música, de uma casa, do
olhar de uma mulher quando fala dele, da forma como o seu cão o espera. E da
sua voz quando fala da "undercurrent" no mar aparentemente calmo,
onde se pode morrer.
Ficou imóvel durante muito tempo depois
de o filme terminar; levantou-se, levou um copo de água e o frasco dos comprimidos
para a mesa-de-cabeceira, sentou-se na cama e pensou que nunca encontrara o
poema de Stevenson, mas talvez seja bom deixar algo de inacabado."
Ana Teresa Pereira
Nenhum comentário:
Postar um comentário