terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O segredo do oratório, de Luize Valente


Num documentário sobre cristãos-novos brasileiros “A estrela oculta do sertão” (de Luize Valente e Elaine Eiger), o poeta recifense Odmar Braga reflete sobre a hesitação da comunidade judaica em reconhecer como “verdadeiros judeus” os marranos de Pernambuco interessados em retomar a fé de Abrãao e Moisés. Segundo ele, a comunidade – formada majoritariamente por judeus askenazitas, da Europa Ocidental, que migraram para a América do Sul fugindo do Holocausto – estaria isenta de culpa por “desconhecer o que não é parte de sua própria história”. Ele se refere à migração em massa para o Brasil, depois do Descobrimento, em 1500, de milhares de judeus sefaraditas (da Península Ibérica) convertidos ao catolicismo à força no século XV em Portugal e na Espanha e que continuaram a observar, envoltos em mistério e segredos, as tradições judaicas no Novo Mundo.
“Isso (o marranismo) é parte da nossa história e não dessa comunidade advinda dessa parte da Europa, que tem só 70 anos em Recife. Nós estamos aqui há 500”, diz Odmar, que voltou ao judaísmo depois de descobrir suas raízes de cristão-novo. “Realmente, é um pouco traumático para rabinos ortodoxos encontrar um nordestino que come tapioca, cuscus, carne de sol com macaxeira e faz um kidushinho (de kidush, a reza do vinho) com cachaça”, ri o poeta pernambucano.
O documentário, de 2005, mudou a vida da jornalista carioca Luize Valente, que ficou ainda mais fascinada pela história dos judeus conversos do Brasil. Tanto que ela decidiu contar, em forma de romance, parte dessa História do Brasil desconhecida até mesmo pelos próprios judeus. O resultado é “O segredo do oratório” (Ed. Record, 320 páginas), a saga de uma família de marranos que atravessa três séculos no Nordeste.
No livro, que mistura aventura, revelações inesperadas e informações históricas, Luize transforma em palpável esse capítulo oculto da narrativa nacional, que ignora as raízes judaicas da terra descoberta por Cabral. Afinal, historiadores concordam que um em cada três portugueses que imigraram para a colônia, nos primeiros séculos do Brasil, era cristão-novos. Eles fugiam das perseguições na Península Ibérica depois que foram expulsos da Espanha, em 1492, e obrigados a abraçar o Cristianismo, em Portugal, em 1497. A autora, no entanto, tem o cuidado de não “dar aulas de História”. O ritmo detetivesco e as reviravoltas da narrativa são prova de que “O segredo do oratório” é tudo menos um livro didático.
O romance acompanha a busca da jovem médica Ioná Mendes de Brito, obcecada em descobrir as raízes de sua família, da fictícia cidade de Córrego do Seridó, no interior da Paraíba. Com ajuda da tia-avó centenária à beira da morte, que também se chama Ioná (assim como gerações de matriarcas da família), ela constrói uma árvore genealógica que remonta aos idos de 1650, quando a primeira Ioná nasceu. Aos poucos, vai unindo as peças de um quebra-cabeças centenário e acaba revelando o maior segredo dos Mendes de Brito.
A jornada de Ioná começa no Sertão nordestino, passa por São Paulo e chega a Nova York, onde a primeira comunidade judaica foi fundada por anussim (conversos) vindos do Brasil depois da expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654. Paralelamente à busca de Ioná, Luize Valente dá voz a um judeu brasileiro nascido durante a do governo holandês, mais tolerante com religiões “exóticas”, cujo ponto de vista peculiar enriquece o livro já coalhado de detalhes. Os dois relatos, separados por séculos, acabam se complementando e convergendo de maneira surpreendente.
O interesse de Luize Valente pelo marranismo, assunto que começou a ser cavucado a fundo por historiadores brasileiros só nas últimas duas décadas, não é de hoje. Em 2002, ela lançou o documentário “Caminhos da memória – a trajetória dos judeus em Portugal”. Mas foi durante a produção de “A estrela oculta do sertão” que a cineasta conheceu o médico paraibano Luciano Canuto de Oliveira, que serve claramente de inspiração para a personagem Ioná. No filme, Luciano mostra um curioso oratório de madeira, há mais de um século em sua família, que serviu de ponto de partida para o livro. O objeto acabou migrando da realidade para a ficção, incorporando o enredo ficcional de “O segredo do oratório”.
Outra figura importante da trama, a historiadora Ethel Mendelstein, tem mais do que pitadas da professora paulista Anita Novinsky, da USP, a maior autoridade brasileira em cristãos-novos. E o genealogista Pedro Vilela é baseado levemente no pesquisador Paulo Valadares, autor do “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”. Mas é a personagem Ana, uma jornalista que decide ajudar Ioná, que Luize parece conhecer melhor. É seu alter ego ficcional, uma espécie de avatar da autora inserido no misticismo sussurrado de um Brasil que ainda tem muito chão para entender suas raízes.
Daniela Kresch, in oglobo.globo.com

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