Num
documentário sobre cristãos-novos brasileiros “A estrela oculta do sertão” (de Luize Valente e Elaine Eiger), o poeta
recifense Odmar Braga reflete sobre a hesitação da comunidade judaica em
reconhecer como “verdadeiros judeus” os marranos de Pernambuco interessados em
retomar a fé de Abrãao e Moisés. Segundo ele, a comunidade – formada
majoritariamente por judeus askenazitas, da Europa Ocidental, que migraram para
a América do Sul fugindo do Holocausto – estaria isenta de culpa por
“desconhecer o que não é parte de sua própria história”. Ele se refere à
migração em massa para o Brasil, depois do Descobrimento, em 1500, de milhares
de judeus sefaraditas (da Península Ibérica) convertidos ao catolicismo à força
no século XV em Portugal e na Espanha e que continuaram a observar, envoltos em
mistério e segredos, as tradições judaicas no Novo Mundo.
“Isso
(o marranismo) é parte da nossa história e não dessa comunidade advinda dessa
parte da Europa, que tem só 70 anos em Recife. Nós estamos aqui há 500”, diz
Odmar, que voltou ao judaísmo depois de descobrir suas raízes de cristão-novo.
“Realmente, é um pouco traumático para rabinos ortodoxos encontrar um
nordestino que come tapioca, cuscus, carne de sol com macaxeira e faz um
kidushinho (de kidush, a reza do vinho) com cachaça”, ri o poeta pernambucano.
O
documentário, de 2005, mudou a vida da jornalista carioca Luize Valente, que
ficou ainda mais fascinada pela história dos judeus conversos do Brasil. Tanto
que ela decidiu contar, em forma de romance, parte dessa História do Brasil
desconhecida até mesmo pelos próprios judeus. O resultado é “O segredo do
oratório” (Ed. Record, 320 páginas), a saga de uma família de marranos que
atravessa três séculos no Nordeste.
No
livro, que mistura aventura, revelações inesperadas e informações históricas,
Luize transforma em palpável esse capítulo oculto da narrativa nacional, que
ignora as raízes judaicas da terra descoberta por Cabral. Afinal, historiadores
concordam que um em cada três portugueses que imigraram para a colônia, nos primeiros
séculos do Brasil, era cristão-novos. Eles fugiam das perseguições na Península
Ibérica depois que foram expulsos da Espanha, em 1492, e obrigados a abraçar o
Cristianismo, em Portugal, em 1497. A autora, no entanto, tem o cuidado de não
“dar aulas de História”. O ritmo detetivesco e as reviravoltas da narrativa são
prova de que “O segredo do oratório” é tudo menos um livro didático.
O
romance acompanha a busca da jovem médica Ioná Mendes de Brito, obcecada em
descobrir as raízes de sua família, da fictícia cidade de Córrego do Seridó, no
interior da Paraíba. Com ajuda da tia-avó centenária à beira da morte, que
também se chama Ioná (assim como gerações de matriarcas da família), ela
constrói uma árvore genealógica que remonta aos idos de 1650, quando a primeira
Ioná nasceu. Aos poucos, vai unindo as peças de um quebra-cabeças centenário e
acaba revelando o maior segredo dos Mendes de Brito.
A
jornada de Ioná começa no Sertão nordestino, passa por São Paulo e chega a Nova
York, onde a primeira comunidade judaica foi fundada por anussim (conversos)
vindos do Brasil depois da expulsão dos holandeses do Nordeste, em 1654.
Paralelamente à busca de Ioná, Luize Valente dá voz a um judeu brasileiro
nascido durante a do governo holandês, mais tolerante com religiões “exóticas”,
cujo ponto de vista peculiar enriquece o livro já coalhado de detalhes. Os dois
relatos, separados por séculos, acabam se complementando e convergendo de
maneira surpreendente.
O
interesse de Luize Valente pelo marranismo, assunto que começou a ser cavucado
a fundo por historiadores brasileiros só nas últimas duas décadas, não é de
hoje. Em 2002, ela lançou o documentário “Caminhos da memória – a trajetória
dos judeus em Portugal”. Mas foi durante a produção de “A estrela oculta do sertão”
que a cineasta conheceu o médico paraibano Luciano Canuto de Oliveira, que
serve claramente de inspiração para a personagem Ioná. No filme, Luciano mostra
um curioso oratório de madeira, há mais de um século em sua família, que serviu
de ponto de partida para o livro. O objeto acabou migrando da realidade para a
ficção, incorporando o enredo ficcional de “O segredo do oratório”.
Outra figura importante da trama, a
historiadora Ethel Mendelstein, tem mais do que pitadas da professora paulista
Anita Novinsky, da USP, a maior autoridade brasileira em cristãos-novos. E o
genealogista Pedro Vilela é baseado levemente no pesquisador Paulo Valadares,
autor do “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes”. Mas é a personagem Ana, uma
jornalista que decide ajudar Ioná, que Luize parece conhecer melhor. É seu
alter ego ficcional, uma espécie de avatar da autora inserido no misticismo
sussurrado de um Brasil que ainda tem muito chão para entender suas raízes.
Daniela Kresch, in oglobo.globo.com
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