Arte
não é só "fazer": é também esperar. Quando o veio seca, nada melhor
para o artista que oferecer a face aos ventos, e viver, pois só da vida lhe
poderão advir novos motivos para criar. Nada pode resultar mais esterilizante
que o encontro de uma síntese, se ela não for, como na vida, a consequência de
uma análise que se retoma a partir dela. Encontrar uma fórmula é, sem dúvida,
uma forma de realização; mas comprazer-se nela e ficar a aplicá-la
indefinidamente, porque agradou, ou compensou, constitui a meu ver uma falta de
caráter artístico. Como nas ciências positivas, o encontro de uma síntese deve
ser o ponto de partida para a busca de outra, e assim por diante, até o
encontro dessa grande e única verdadeira síntese que é a morte. E nesse
particular eu considero Picasso o maior artista dos nossos tempos.
Picasso
é como o câncer às avessas. Sua arte múltipla e prolífica representa uma
tremenda afirmação de vida, pois o grande andaluz reformula-se constantemente,
até quando varia sobre o mesmo tema. O quadro é para ele como um abismo onde se
lança de cabeça, e que uma vez possuído, repele-o fora, como uma mulher
violentada. Porque Picasso é dos poucos artistas de qualquer época a quem o
abismo teme. O abismo teme esse louco saltimbanco que se atira no vácuo da tela
sem saber se vai voltar - e volta sempre. De quantos mais, no nosso século, se
pode dizer o mesmo?
Arte
é afirmação de vida, em que pese isto aos mórbidos. Afirmação de vida nesse
sentido que a vida é a soma de todas as suas grandezas e podridões: um profundo
silo onde se misturam alimentos e excrementos, e do qual o artista extrai a sua
ração diária de energias, sonhos e perplexidades: a sua vitalidade
inconsciente. Tome-se Villa-Lobos, por exemplo. Villa-Lobos é um caudal que se
precipita arrastando tudo o que encontra em seu caminho, troncos floridos e
paus pobres, ninfeias e cadáveres; e, uma vez represado, harmoniza os elementos
antagônicos dessa rica contextura em música, seja da maior tranquilidade, seja
do maior tormento - pois tudo faz parte da vida. Como admirar, assim, o artista
que se recusa a comer dessa mistura, que desinfeta as mãos para tocá-la, que
vive a tomar leite para não se envenenar com suas tintas?
A
arte não ama os covardes: e essa afirmação não pode ser mais antifascista. A
arte, há que domá-la como a um miúra: e para tanto é preciso viver sem medo.
Não a coragem idiota dos que se arriscam desnecessariamente, em franco
desrespeito a esse terrível postulado da vida, que ordena uma preservação
constante, de maneira a se estar sempre apto para os seus grandes momentos.
Esse foi, a meu ver, o pecado maior de Hemingway, e a loucura maior de Rimbaud,
que resultou, num, numa morte simulada, temporã, que se antecipou à grande síntese; no outro, numa
evasão total, numa recusa pânica a ver o fundo do abismo. Isto sem prejuízo da
arte, que ambos exerceram, cada um a seu modo, com gênio e responsabilidade;
mas não o gênio e a responsabilidade de um Tolstoi ou de um Picasso. E aí é que
está a questão.
É
evidente que nenhum prazer poderá jamais substituir uma relação sexual de amor.
E é isso o que irrita em certos artistas: eles acabam por se satisfazer
solitariamente. Não são capazes, depois de encontrar a síntese, de jogá-la aos
peixes, como faz Picasso diariamente, e sair para outra - e não por
insatisfação pura e simples: porque sabe intuitivamente que quem acha vive se perdendo, como filosofou Noel Rosa. O negócio é a
busca. Aí que a vida incute.
Eu
conheço artistas que não se dão mais sequer o trabalho de mergulhar no que
fazem, no ato de criar. Trabalham mecanicamente, a partir de um métier adquirido, e elaboram sua obra dentro de
esquemas predeterminados por uma síntese atingida. E ficam jogando boxe com a
sombra, justificando-se de sua impotência criadora com a autossatisfação do
próprio virtuosismo; aparentemente vaidoso de sua rigidez temática, mas no
fundo sabendo que se encontram diante desse fatal impasse em que esbarram
sempre os que se recusam às fontes mais generosas da vida e da criação.
Há amigos de Picasso, e a um eu conheci,
que o acusam de avarento. Mas certamente não com sua vida e sua arte. Já ouvi
toda sorte de histórias a seu respeito: de que guarda a fortuna em casa, dentro
de uma arca, e fica a contar e recontar moedas como um usurário de teatro.
Histórias absurdas, evidentemente, para quem não deve ter a menor noção do
valor do dinheiro; cujos guardanapos e toalhas, que ficava riscando à toa, eram
disputados a tapa pelos garçons dos restaurantes onde comia em Cannes. Mas
fosse isso verdade - esse horrível pecado que é a avareza - e não seria uma
ínfima anomalia neurótica, desculpável, portanto, num homem que criou a maior
obra de arte do seu século? Quem fez mais que ele, que revolucionou toda a
estética da arte contemporânea e se colocou, chegando o momento, do único lado
certo - aquele contra os inimigos do homem e da cultura? Hoje, beirando os
noventa, o velho minotauro, ainda sadio, ainda pintando, pode dizer:
"Criei um mundo!" E não, bem certo, porque tivesse sido avaro com sua
vida. Fecundou mulheres, teve filhos, fez amigos e discípulos por toda parte.
Prodigalizou seu sêmen. Foi um homem.
Vinicius
de Moraes
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