terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Amour*: alguns momentos e partida




A casa é de dois professores com mais de 60 anos. Vê-se pela cozinha, escassez de eletrodomésticos, a forma como lavam a louça, mergulhada na água da pia, poupando detergente. Vê-se no equipamento de reprodução de som, no mobiliário. Do vestíbulo de entrada acede-se ao quarto e à cozinha. Uma janela abre para um saguão. Por aí vai entrar um pombo. Um rato vagaroso. Um animal pré-histórico de marcha bamboleante, como os que povoam o filme La Ciénaga de Lucrecia Martel e moldava, em barro preto, o artista troglodita de Castro Daire. A entrada da ave representa a irrupção da natureza no espaço privado, um degrau descendente na decadência, um sinal de perigo, invasividade, um momento em que a dualidade exterior/interior se esbate e os habitantes da casa, nós todos, afinal, ficamos expostos ao lento trabalho da morte. O fato de sentirmos a entrada do pombo como uma ameaça - e da luz amarela do saguão - mostra como avançou a doença comum que nos consome. Como nos encarceramos na casa - casulo, de onde não queremos sair. Recusamos toda a exposição. E torna-se insuportável a ideia de receber a visita dos que foram próximos e não estão a sofrer a nossa metamorfose. Da ironia do genro inglês, às investidas da filha litigante. Quando tocam à porta, abrimos e não se vê ninguém. Caminhamos aos apalpões no patamar onde uma outra porta abre para um corredor iluminado. Perguntamos, “está alguém”, e assustamo-nos com a nossa voz. Ninguém responde. E de súbito uma mão tapa-nos a boca e sustem-nos a respiração. Sonho agônico dos velhos, dos roncopatas, dos que sufocam. O concerto de abertura é visto do ponto elevado do palco. Gente tão elegante. Com idade, mas sem a usura da idade. É o nosso ponto de partida. Sorriem, trocam curtas frases espirituosas. Se nos aproximássemos veríamos as placas das carótidas. A ausência como crise inicial e pouco tempo depois a hemiparésia. Os cabelos perdem o brilho e a leveza, os esfíncteres deixam de funcionar. O sono dos lactentes. Nunca mais a música. E então somos outra vez crianças, não nos compreendem, repetimos uma pequena frase, exasperamo-nos, chamamos pela nossa Mãe, cantamos o refrão de uma canção antiga. Apaziguamo-nos com a mão da pessoa amada. O frio, o calor, a seda, as rugas. E uma palavra que se levanta, palilálica, como uma jangada, na onda da consciência que reflui. A palavra Mal. Segura de novo a minha mão. Dói. Não deixes que me vejam assim. Dói. Que seja esta pessoa. Dói. Que me levem para o Hospital. Dói. Acordar, vestir, fazer a higiene, preparar a comida, mudar os lençóis, fingir a terapia, a ginástica e a terapia da fala, descansar, comprar comida. O marido da porteira ajuda a trazer as compras para cima, outra vez a comida, a higiene, ler algumas notícias. Não quero saber, não me interessa. Beber o último copo. Dormir a última sesta. Esperar longamente. E ser recompensado. Oh meu amor, tu voltas quando já não esperava. Regressam os gestos mínimos que tanta falta me fizeram, o modo como te mexes, como andas, o som dos teus pés na madeira do sobrado, a pausa que fazes para que te componha o casaco, abra a porta. Os pequenos nadas que quando me faltaram eram tudo, a falta que me fazias, como se o vento frio vindo do Sena castigasse os ossos quando tu não estavas. Até que voltaste. É agora altura de partir e eu parto contigo, atrás de ti.
Fonte: anaturezadomal.blogspot.com.br

*O drama "Amour", dirigido pelo austríaco Michael Haneke sobre os desafios do amor para um casal de idosos e vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, venceu no domingo o prêmio de melhor filme da Associação de Críticos de Cinema de Los Angeles.

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