Imagem: Wikipédia
Andando esses dias, Senhor Redator, pelo
sertão mundo afora, levando na bruaca enfeitada com arte de pregaria a fortuna
das palavras de gente importante como Felipe Guerra, Eloy de Souza, Câmara
Cascudo, Juvenal e Oswaldo Lamartine – fachos luminosos do sertão à luz das
lamparinas feito – olhei o mato esturricado, e pensei cá comigo: a estética da
civilização sertaneja é a caatinga seca. No inverno, os verdes se parecem. Na
fartura, a paisagem épica cede lugar ao dionisíaco. Tudo é festa para os olhos.
Foi
ali, na secura daquele mundo sem brandura e sem amavio que floresceu a
sociedade rude dos vaqueiros, no dizer bonito de Euclydes da Cunha. Longe da
civilização do açúcar, de senhores de engenho aristocráticos, ricos de escravos
pobres de tudo. O compadrio não nasce entre dominadores e dominados. Ao
contrário do sertão, onde o senhor de terras e de gados divide a cria dos
bezerros com os seus vaqueiros, é padrinho dos seus filhos e, juntos, seja na
seca ou no inverno, dividem a vida e a lida.
Nem
citei nas minhas conversas com os alunos do Sesc, sempre tão atenciosos e que
encontrei naqueles vastos auditórios, a Conferência de Lajes que Eloy de Souza
fez para tão poucos ouvidos e passou anos perdida. Foi Vingt-Un Rosado que um
dia encontrou nos guardados de um sertanejo velho e zeloso do que ouvira no
tempo de moço. Não falei do alvoroço do seu coração, mas contei lembranças
antigas de Juvenal Lamartine puxando o fio da memória dos velhos costumes do
seu grande sertão.
Como
foi bom repetir a belíssima e lúdica descrição de Câmara Cascudo a projetar no
plano infantil os traços e costumes da tradição na vida real. A imaginação
recriando no quintal da infância o sertão do menino: dos bois de osso, dos
açudes feitos com cacos de louça, da água escorrendo nas valas abertas a unha.
Um sertão em miniatura, mas, na repetição mágica de cada gesto, o concerto
maquinal de um mundo real, embora vivido num sopro de vida que reinventa,
alegoricamente, o tempo morto.
Olhando
aquela gente ouvindo cada palavra num silêncio monástico fiquei convencido da
velha certeza que tantas vezes aprendi com Oswaldo Lamartine: há qualquer coisa
de bíblico no sertão. Na pastoral dos seus lajedos. Na solidão das suas pedras.
Na tristeza dos bichos no cantochão do aboio a apascentar os rebanhos. Um rio
cheio é um deslumbramento, avisa Câmara Cascudo. E o açude, no sono das suas
águas mansas quando acorda no quebrar da barra para repetir, a cada dia, o
milagre da criação.
Seja como for, é um mundo inteiro que
vive ali encantado naqueles mundos de lonjura e solidão, feitos de abandono,
mas espiados por olhos que ninguém vê. Mundo que nasce e morre a cada inverno e
a cada seca. Morre até que as primeiras chuvas acordem no seu chão velho a
babugem que dormia e que volta para reinaugurar nos homens e nos bichos a
alegria da vida. Sertão vazio, perdido entre caminhos sem ninguém, e que um dia
se levanta depois do sono das horas sem vida. Desertão, saartão, sertão…
Vicente
Serejo, in O Jornal de
Hoje, 28/08/2012
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