“A maioria dos homens, na sua injustiça, para não
dizer na sua imprudência, quer possuir amigos tais como eles próprios não
seriam. Exigem o que não têm. O que é justo é que, primeiro, sejamos homens de
bem e em seguida procuremos o que nos pareça sê-lo. Só entre homens virtuosos
se pode estabelecer esta conveniência em amizade, sobre a qual insisto há muito
tempo. Unidos pela benevolência, guiar-se-ão nas paixões a que se escravizam os
outros homens. Amarão a justiça e a equidade. Estarão sempre prontos a tudo
empreender uns pelos outros, e não se exigirão reciprocamente nada que não seja
honesto e legítimo. Enfim, terão uns para os outros, não somente deferências e
ternuras, mas, também, respeito. Eliminar o respeito da amizade é podar-lhe o
seu mais belo ornamento.
É, pois, erro funesto crer que a amizade abre via livre
às paixões e a todos os gêneros de desordens. A natureza deu-nos a amizade, não
como cumplice do vício, mas como auxiliar da virtude.
A fim de que a virtude, que, sozinha, não poderia
chegar ao ápice, pudesse atingi-lo com o auxílio e o apoio de tal companhia.
Aqueles para quem esta aliança existe, existiu ou existirá, deverão vê-la como
a melhor e a mais feliz que se possa fazer para atingir o soberano bem.
É, digo, numa tal sociedade que se encontram todos
os bens desejáveis, a honestidade, a glória, a tranquilidade e a alegria da
alma, todos os bens, em uma palavra, que tornam a vida feliz, e sem a qual ela
não poderia sê-lo. Se quisermos esta felicidade suprema, apliquemo-nos à
virtude, sem a qual não poderíamos adquirir nem a amizade, nem um outro objeto
dos nossos desejos. Os que a negligenciam, e que todavia imaginam ter amigos,
reconhecerão afinal o seu erro, quando nas horas adversas forem forçados a
experimentá-los.
Assim, não será demais insistir, é preciso conhecer
antes de amar e não amar antes de conhecer. A negligência, funesta em tantas
circunstâncias, é-o sobretudo na escolha e no comércio dos amigos. As reflexões
vêm sempre muito tardiamente e, como diz o antigo provérbio, o que está feito,
feito está. Ligue-se de qualquer maneira, seja por um comércio diário, seja
mesmo por serviços, e depois, repentinamente, à menor ofensa, a amizade
quebra-se a meio do caminho."
Marcus
Cícero, in Diálogo sobre a Amizade
Nenhum comentário:
Postar um comentário