Caetano Veloso - 1968
As mudanças operadas na sociedade brasileira a partir da
segunda metade dos anos sessenta foram muito profundas e assentaram as bases do
pensamento e do sentimento nacional em relação ao conceito de pátria. Vivíamos
um período onde a cada dia verificava-se uma crescente diminuição das
liberdades individuais, fruto do progressivo fechamento do regime instaurado a
partir de março de 1964, que entre outras coisas não admitia que sua autoridade
fosse contestada. Acontece que o mundo respirava o ambiente da contestação, da
renovação de valores, não se admitindo mais nenhum tipo de autoritarismo que
viesse cercear as ideias e o ideal de liberdade que estava presente na mente e
nos corações dos jovens, esses os protagonistas dessa mudança de mentalidade
proposta.
A cada dia acirravam-se os embates entre aqueles que
almejavam um mundo livre, onde reinaria o “paz e amor” e os outros que
desejavam sufocar essas tentativas de transformação em prol de um ideário
baseado no conceito de esquerda/direita, comunismo/capitalismo, discursos esses
que se enquadravam no esqueça ideológico da guerra fria. Se para alguns a
América Latina tinha criado seus mitos nas figuras de Che Guevara e Fidel
Castro, os americanos do norte haviam em nome dessa propalada escalada de
contra ofensiva comunista resolvido enviar tropas ao Vietnã para intrometer-se
numa situação política local transformando-a num sangrento embate onde os
maiores perdedores, como sempre acontece, foram as populações civis e os
soldados que para la iam como buchas de canhão para servirem a um ideal que nem
eles mesmos sabiam qual era. O resultado foi a fragorosa derrota da
superpotência, tendo que retirar suas tropas de forma humilhante, mas que
infelizmente não foram suficientes para lhe servirem de lição.
No centro das atenções mundiais estavam os artistas populares
que buscavam através da arte serem os porta-vozes de uma geração que vivia em
conflito ideológico, mas que no fundo sabiam o que desejavam, expressando-se de
maneira livre e tornando-se os realizadores da trilha sonora de um dos períodos
mais interessantes da nossa história contemporânea.
Foi com esse sentimento e também buscando um retorno a nossas
mais legitimas tradições, com um diálogo nativista, transgressor e
revolucionário que um grupo de baianos a partir de 1967 se transformariam na
consciência e na discussão do que é ser brasileiro, transgredindo regras de
comportamento, impondo opiniões conflitantes/contraditórias, porém demonstrando
que não estávamos fora do alcance dos acontecimentos mundiais, eles apenas
precisariam ser recontextualizados com nosso ideário de pátria, nação,
nacionalidade, modernidade e apontar os rumos que essa discussão iria provocar
para o nosso desenvolvimento e amadurecimento futuros.
Com esse clima surgem então Caetano Veloso e Gilberto Gil na
ponta do processo e com eles e sua arte/manifesto algumas das mais
interessantes mensagens musicais de período histórico recente. Depois de ter
participado do Festival da Canção da TV Record e lançado um primeiro disco com
Gal Costa, Caetano nos brinda com um LP que tem a sua visão pessoal e o seu
posicionamento nesse ambiente de mutação constante.
O disco que traz na capa seu nome e foi lançado em 1968, um
ano emblemático para o nosso país, nos revela canções como Tropicália onde o
discurso da modernidade transformadora/contestadora se insere com uma colagem
critica do contexto nacional; Soy loco por ti América, numa mistura de rumba,
cumbia e mambo, com parte da letra em espanhol é um libelo a favor da revolução
comunista/socialista cubana e uma homenagem a Che Guevara recentemente
assassinado; Superbacana com uma batida pop aproveita sem cerimônia inúmeros
clichês da época numa interessante colagem literária, Alegria, alegria, com sua
múltipla e fragmentária imagem de nossa sociedade inaugura uma nova linguagem
urbana na musica brasileira tem o acompanhamento do grupo argentino Beat Boys
que com suas guitarras elétricas provocou uma grande polemica alimentada por
aqueles que defendiam um nacionalismo musical e não aceitavam a introdução de
instrumentos típicos do Rock and Roll em nossa canção popular.
Destaque ainda para Clarice que entrou de última hora por
Caetano considerá-la muito tradicional e não se engajar no espírito do disco e
acabou tornando-se num de seus destaques pela beleza da poesia e da melodia;
Paisagem útil, Clara, Anunciação e Eles que demonstram em sua estrutura uma
postura poética influenciada pela mensagem modernista e antropofágica de
autores como Mario de Andrade e Oswaldo de Andrade, um retorno às nossas tradições
interioranas com Ave Maria, uma autobiografia em No dia que eu vim-me embora e
uma canção dor de cotovelo com Onde andarás, em que Caetano chega inclusive a
imitar a impostação e a pronúncia vocal de Nelson Gonçalves.
Com arranjos arrojados
uma mistura de ritmos e gêneros musicais como samba canção, bolero, baião,
pop/rock, beguim e bossa nova, além de uma capa colorida/tropicalista que
demonstrava o visual estético do movimento cultural que ajudara a fundar esse
disco de Caetano Veloso insere-se portanto como um dos trabalhos mais
importantes de nossa moderna musica popular, um retrato poético/musical de uma
época que mudou nossas vidas para sempre. Ouvi-lo é refletir sobre um tempo que
fundamentou as bases do pensamento intelectual brasileiro recente e que nos
influencia até os dias de hoje.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br
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