“Sucede,
também, como por calamidade, que algumas vezes é necessário romper uma amizade:
porque passo agora das amizades dos sábios às ligações vulgares. Muitas vezes
quando os vícios se revelam num homem, os seus amigos são as suas vítimas como
todos os outros: contudo é sobre eles que recai a vergonha. É preciso, pois,
desligar-se de tais amizades —, afrouxando o laço pouco a pouco e, como ouvi
dizer a Catão, é necessário descoser antes que despedaçar, a menos que se não
haja produzido um escândalo de tal modo intolerável, que não fosse nem justo
nem honesto, nem mesmo possível, deixar de romper imediatamente.
Mas
se o caráter e os gostos vierem a mudar, o que acontece muitas vezes; se algum
dissentimento político separar dois amigos (não falo mais, repito-o, das
amizades dos sábios, mas das afeições vulgares), é preciso tomar cuidado em,
desfazendo a amizade, não a substituir logo pelo ódio. Nada mais vergonhoso,
com efeito, que estar em guerra com aquele que se amou por muito tempo.
(...)
Apliquemo-nos, pois, antes de tudo, em afastar toda a causa de ruptura: se,
contudo, acontecer alguma, que a amizade pareça antes extinta do que
estrangulada. Temamos, sobretudo, que ela não se transforme em ódio violento,
que traz sempre consigo as querelas, as injúrias, os ultrajes. Por nós,
suportemos esses ultrajes quanto forem suportáveis e prestemos esta homenagem a
uma antiga amizade, de modo que a culpa caiba a quem os faz e não àquele que os
sofre.
Mas
o único meio de evitar e prevenir todos os aborrecimentos é não dar a nossa
afeição nem muito depressa, nem a pessoas que não são dignas.
São
dignos da nossa amizade aqueles que trazem consigo os meios de se fazer amar.
Homens raros! De resto, tudo que é bom é raro e nada é mais difícil do que
achar alguma coisa que seja em seu gênero perfeita em tudo. Mas a maior parte
dos homens não conhece nada de bom nas coisas humanas senão o que lhes
interessa e tratam seus amigos como aos animais, estimando mais aqueles de quem
esperam recolher mais proveito.
Também são eles privados dessa amizade
tão bela e tão natural, por si mesma tão desejável; e o seu coração não lhes
faz compreender qual é a natureza e a grandeza de tal sentimento. Cada um
ama-se a si mesmo, não para exigir prêmio da sua própria ternura, mas porque
naturalmente a sua própria pessoa lhe é cara. Se não existe alguma coisa de
semelhante na amizade, não se achará nunca um verdadeiro amigo; porque um
amigo, é um outro nós mesmos.”
Marcus
Cícero, in Diálogo sobre a Amizade
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