"Não
hás-de julgar segundo a soma. Vens-me dizer que não há nada a esperar daqueles
acolá. São grosserias, gosto do lucro, egoísmo, ausência de coragem, fealdade.
Mas se me podes falar assim das pedras, as quais são rudeza, peso morno e
espessura, já o não podes daquilo que tiras das pedras: estátua ou templo.
Quase nunca vi o ser comportar-se como o teriam feito prever as suas partes. Se
pegares em vizinhos à parte, virás a concluir que cada um deles odeia a guerra
e não está disposto a abandonar o lar, porque ama os filhos e a esposa e as
refeições de aniversário; nem a derramar o sangue, porque é bom, dá de comer ao
cão e faz carícias ao burro, nem a roubar outrem, pois tu bem vês que ele
apenas preza a sua própria casa e puxa o lustro às suas madeiras e manda pintar
as paredes e perfuma o jardim de flores.
E dir-me-ás: ‘Eles representam no mundo o
amor à paz...’ No entanto, o império deles não passa de uma grande terrina onde
se vai cozendo a guerra. E a bondade deles e a doçura deles pelo animal ferido
e a emoção deles à vista de flores não passam de ingrediente de uma magia que
prepara o tilintar das armas, da mesma maneira que aquela mistura de neve, de
madeira envernizada e de cera quente prepara as grandes palpitações do coração,
embora a captura não seja, como nunca é, da essência do laço."
Antoine
de Saint-Exupéry, in Cidadela
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