"Vais encontrar o mundo, disse-me
meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta." Bastante experimentei
depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança
educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico,
diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos
cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais
sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da
vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto,
com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje,
sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a
enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos
outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos
desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente
do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é
uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um
pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado
beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola
familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai,
distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove
horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava
até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o colégio
comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei
quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta
recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de
externato; com a lembrança de alguns companheiros — um que gostava de fazer rir
à aula, espécie interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas
costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro adamado,
elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso,
fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de madrepérola. Mais
ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de
terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas
iniciais como em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a
família, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as
sensações novas da nova fase. O internato! Destacada do conchego placentário da
dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade.
Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus
brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu
militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força
dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como
uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em
desordenado aperto, — massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro
definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu
pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo
sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de
pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular
do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação
das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados,
pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água...
Mas um movimento animou-me, primeiro estímulo sério da
vaidade: distanciava-me da comunhão da família, como um homem! ia por minha
conta empenhar a luta dos merecimentos; e a confiança nas próprias forças
sobrava. Quando me disseram que estava a escolha feita da casa de educação que
me devia receber, a notícia veio achar-me em armas para a conquista audaciosa
do desconhecido.
Um dia, meu pai tomou-me pela mão,
minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.
Trecho
inicial do capítulo I de O ateneu, de Raul Pompéia
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