— Chama-me Natureza ou Pandora;
sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura
soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as
plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela
vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para
certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é
teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da
miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência
reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e
levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o
rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma
expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da
impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as
tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão
glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me
sentia eu o mais débil e decrépito dos
seres.
— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula.
Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma
concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger
nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não
faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o
sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a
esperança, consolação dos homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás
prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do
nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale,
afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me
sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices,
e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de
vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da
luta? Conheces de sobejo tudo o
que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a
melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim,
o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor
da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma,
matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e
perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não
tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio
da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o
estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a
uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de
um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um
desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos
Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e
das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso
espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe
não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e
a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de
todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos
desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são
outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde
essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o
amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham
a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um
farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia
o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da
espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um
sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem,
flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma
figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro
de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha
da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou
lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia
ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que
Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de
transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e
idiota.
— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez
monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora
concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos
lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os
séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se
superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras
alegres, como os devassos de Cômodo,
e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os
pés; então disse comigo: — Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e
passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade. E fixei os
olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então
tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século
trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de
erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; cada um
deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para
remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de
calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado,
armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas
de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se
orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra,
subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que
entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar,
enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás deles os
futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso,
audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e
assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de
atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a
rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o
relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se;
uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro
cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a
diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era
efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à
porta da alcova, com uma bola de papel...
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