“Faltavam dois dias para o Natal de 1938. Era meia-noite e
Arthur Bispo do Rosário descansava no quintal do casarão da família Leone, no
Rio de Janeiro. De repente, a cortina preta que revestia o teto do mundo se
rasgou sobre ele e deu passagem a sete anjos de aura azulada e brilhosa. Vinham
do céu a seu encontro. Era um chamado. A noite se fez dia para convocá-lo a sua
missão. Bispo recebeu os anjos e os acolheu em algum canto e sua psique. A
glória absoluta: era enfim reconhecido.” (Hidalgo, 1966).
Arthur Bispo do Rosário perambulou numa delicada
região entre a realidade e o delírio, a vida e a arte. Taxado como louco e
esquizofrênico, Bispo passou cinqüenta dos seus oitentas anos de vida,
trancafiando em um hospital. Criou um universo lúdico de bordados,
assemblages, estandartes e objetos durante os mais obscuros períodos da
psiquiatria.
Bispo nunca teve nenhum tipo de treinamento ou
estudo, nem mesmo conviveu no meio das artes. Acreditava estar fazendo parte de
um propósito maior, um propósito divino no qual atendia a um chamado de Deus.
Dizia ser um escolhido do Senhor para “julgar os vivos e os mortos”,
"reconstruir o universo" e "registrar a sua passagem aqui na
terra".
Mas, diferente do que se esperaria de um religioso
fanático, Bispo não esculpiu santos, não decorou igrejas, nem nunca trabalhou
com nenhuma espécie de tinta, telas ou cavaletes. Usava garrafas plásticas,
utensílios domésticos velhos e até mesmo fios de linha, que arrancava de suas
roupas e lençóis. Entre os temas, destacam-se navios (tema recorrente devido à
sua relação com a Marinha na juventude), estandartes, faixas de mísses e
objetos domésticos. A sua obra mais conhecida é o Manto da Apresentação,
que Bispo deveria vestir no dia do Juízo final.
Sua arte foi descoberta por Frederico Morais, que
organizou uma exposição nos anos 80, e de lá pra cá ganhou vários
documentários, filmes, livros e até peças de teatro. A genialidade deste
sergipano, nascido no ano de 1909 ou 1911 (não se sabe ao certo), ultrapassou
não só barreiras psíquicas como territoriais. Chegou a representar o Brasil na
prestigiada Bienal de Veneza, além de correr museus pelo mundo, a exemplo do
Jeu de Paume, em Paris.
Curiosamente, em vida, Arthur Bispo recusava o
rótulo de “artista”, dando caráter divino a sua tarefa. Mas a força de sua obra
ignora limites e até hoje atravessa fronteiras, transgredindo convenções e
levando espectadores de todo o mundo ao encantamento, os fazendo especular como
homem de tão simples aparência e de tão pouco estudo chegou tão perto de Deus.
Coisa que nenhum homem letrado até hoje conseguiu alcançar.
Até onde a vida beira a loucura? E onde é o limite da
loucura na arte? O fato é que o Bispo foi um gênio incontestavelmente, suas
técnicas e sabedorias artísticas são naturais e instintivas. Sua mente era incrivelmente
sensível a ponto de explodir em arte e loucura. O Bispo, que faleceu em 1989,
só permitia que entrassem em seu ateliê se as pessoas vissem uma cor especial
nele, um sinal de sensibilidade e delicadeza com sua obra. Arthur Bispo do
Rosário produziu uma beleza insana, poética e humana como nenhum outro artista
brasileiro em sã consciência conseguiu.
Mariana Biork, in obviousmag.org
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