“Raramente um homem sozinho
sente vontade de rir. Incomoda-me estar só. Gostaria de falar com alguém sobre
o que está me acontecendo, antes que seja tarde demais, antes que eu comece a
assustar os garotinhos. Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser
alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos
superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu
presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter
com o passado: não posso fugir de mim mesmo. Para que o mais banal dos
acontecimentos se torne uma aventura, basta que nos ponhamos a narrá-lo. Quando
se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo.
Nunca há começo. Os dias se sucedem aos dias, sem rima, nem solução: é uma soma
monótona e interminável. De quando em quando, chega-se a um total parcial,
dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não
há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E todos
os lugares se parecem: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de uma quinzena é tudo
igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que
nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo.
Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos
dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926...”
Sartre, in A Náusea
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