Chuva, chuva, chuva.
É a primeira chuva a
que assisto da minha janela de hóspede - neste verão que bem pode ser a
primavera, pois não tenho noção do tempo nem disponho de bússola para me guiar
entre as horas do dia e da noite. Ontem o deputado que se senta ao meu lado na
mesa garantiu-me que estávamos em agosto, e até fez o sinal da cruz sobre o
peito para demonstrar que não estava mentindo; mas eu tenho minhas dúvidas a
respeito e continuo acreditando que não estamos sequer em janeiro ou em março,
pois o rio que ouço a distância continua a caminhar para a direita e só com a chegada
da primavera é que ele se volta para a esquerda e se torna realmente belo.
Presumo que aqui me
encontro aproximadamente há uns vinte anos, ou uns cinco pelo menos, pois já me habituei com a
cama, as cadeiras e a mesinha de cabeceira, e não sou de me habituar muito
depressa com as coisas. Eu poderia, bem sei, perguntar ao criado ou à criada
que me servem todos os dias, ou mesmo ao próprio gerente do hotel, ou ainda à
sua jovem esposa tão louçã e já tão vesga, o tempo exato em que aqui me
encontro e o mês e o ano em que porventura estamos vivendo nesta fria noite de
chuva; mas tenho receio de que eles me tomem por um maníaco que está sempre a
querer saber as coisas, eu que tenho fama de tão discreto e de tão educado, e
prefiro morrer sem saber o dia da minha morte a ter que causar-lhes tamanha
decepção.
De resto, a noite não
é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama,
colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o
espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz.
Livros eu não tenho para ler no momento, nem eles dão coisa que preste e que me
faça mais sábio do que sou, pelas amostras que já tive nestes últimos tempos (A
Bíblia que me deram a ler era exatamente igual a todas as Bíblias que eu já conhecia
antes de vir para cá, e o romance policial que de certa feita me emprestou a
empregada trazia uma história ingênua e fácil de ser desvendada, como pude
verificar logo pelas últimas páginas.) Violão também não tenho, nem piano, nem
saxofone, de maneira que a chuva ainda é a melhor coisa que me poderia
acontecer nesta noite sem mês e sem ano, já que as paredes brancas e iguais já
não me oferecem segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas como
diante de um espelho. Exatamente: a noite foi feita
para os galos dormirem e os insones roerem a sua insônia. Roerem - não
disse bem?
Assombra-me (sempre
me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num
travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado
inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. Parecem bonecos
de corda a que de repente faltasse a corda, e a sua consciência é também uma
simples questão de corda a mais ou a menos, como o é também a sua voz, em tudo
igual à de um boneco que fala mamãe. Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre
uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu
mais penosa e meritória do que a do Himalaia ou mesmo a do monte Everest.
Agora a chuva baila
em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou fingem que dormem pelo
menos, num silêncio que marca com exatidão o barulho da chuva sobre o telhado.
Seu eu gritasse é possível que a chuva continuasse caindo, mas o silêncio pelo
menos deixaria de existir dentro do meu quarto e dentro dos quartos vizinhos, e
a chuva já não teria a marcá-la o compasso unânime do sono de todos os imbecis
da terra. Vou gritar, espera!... - Não, é melhor eu deixar para gritar amanhã,
ou num domingo, que é dia de júbilo universal e é quando todos gritam sem motivo
ou pelos motivos mais tolos. Agora vou pentear o cabelo com a água da chuva, olhar
um pouco mais o céu indevassável através das grades da janela (por causa dos ladrões)
e depois recolher-me ao leito, como uma criança de dois anos. Nos meus bons
tempos esta era a hora exatamente de eu sair à rua, de guarda-chuva aberto e a alma
escancarada, até que encontrasse um bar simpático que me acolhesse e ao guarda-chuva
e nos deixasse ficar a sós até alta madrugada. (Neste hotel, não sei por que, o
regime é mais severo do que nos outros, e o hóspede não tem direito de pôr o pé
na rua sem falar com o gerente ou com o subgerente, que geralmente lhe negam autorização.
Coisas da nova democracia, parece-me.)
Outra coisa que a
chuva me faz lembrar sempre são os mortos. Tive um amigo que de certa feita
escreveu esta frase lapidar: A chuva dá de beber aos mortos, e talvez
por isso eu não possa sentir a chuva sem sentir a presença dos mortos ao meu lado, e até mesmo dentro de mim. Por
outro lado, não é verdade que os mortos hão de sentir-se apavorados dentro da
terra encharcada e gotejante, sobretudo os mortos recentes e que ainda não
estão acostumados com a sua solidão? Eu, depois de morto, tanto se me dá que
chova ou que deixe de chover, mas aquela frase do meu amigo não deixa de ser
bela e profundamente inspiradora. Não acredito que a sede seja o que mais
importune os mortos no seu silêncio, mas a poesia é sempre necessária e é bom
que os poetas estejam lembrando-se dos mortos nos dias de chuva, como uma mãe
dos seus filhos.
Agora que já olhei a
chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro deste hotel mal-assombrado
(mudar-me-ei amanhã) - o que me resta a fazer é não fazer nada, como sempre, e
esperar que as horas escoem lentamente e que o meu corpo durma antes de mim, ao
peso do cansaço e da mais absoluta monotonia. Deitar-me-ei como um faquir sobre
os espinhos do meu leito - bela imagem, sem dúvida – apagarei a luz, rezarei um
padre-nosso (eu que não creio em Deus nem creio que ele possa crer em mim) e
fingirei de morto por algum tempo, só respirando e deixando que me bata o coração,
por via das dúvidas. No escuro a noite é completamente escura, como o podem
atestar todos os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que, mesmo
com chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com ela de novo as
esperanças e as ideias felizes, que são sempre as mesmas sempre, apesar de
todas as decepções ou talvez por isso mesmo.
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