[…]
Mas trouxeram. Me trouxeram, rebanhal,
os todos possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos ― alguns com as
caras secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na
areia; outros um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de
não terem tido a doença. Os que fingiam não me temer, achavam mais
favorável querer ter vindo por próprio conselho; mal-abriam boca em
risos. Dei que pronto todos provassem gol d alguma cachaça. Aquela
gente depunha que tão aturada de todas as pobrezas e desgraças.
Haviam de vir, junto, à mansa força. Isso era perversidades? Mais
longe de mim ― que eu pretendia era retirar aqueles, todos,
destorcidos de suas misérias. Até que fiz. Ah, mas, mire e veja: a
quantidade maior eram aqueles catrumanos ― os do Pubo. Eles, em
vozes. Ou o senhor não pode refigurar que estúrdia confusão calada
eles paravam, acho que, de ser chamados e reunidos, eles estavam
alertando em si o sair de um pavór. Ao depois, quando dei brado,
queriam se alinhalinhar, mesmo, solertes, como se por soldados
reconhecidos. Seriam eles assim bons no ruim, para guerra serviam,
para meter em formatura? Tanto todo o mundo achava graça, meus
jagunços queriam pagode. Ah, os catrumanos iam de ser, de refrescos.
Iam, que nem onças comedeiras! Não entendiam nada, assim
atarantados, com temor ouviam minha decisão. ― Filhos-da-mãe! ―
eu declarei. Tive de repente fé naqueles desgraçados, com suas
desvalidas armas de toda antiguidade, e cabaças na bandola, e
panelas de pólvora escura e fedor de fumaça ceguenta. Adivinhei a
valia de maldade deles: soube que eles me respeitavam, entendiam em
mim uma visão gloriã. Não queriam ter cobiças? Homens sujos de
suas peles e trabalhos. Eles não arcavam, feito criminosos? ― O
mundo, meus filhos, é longe daqui! ― eu defini. ― Se queriam
também vir? ― perguntei. Ao vavar! o que era um dizer desseguido,
conjunto, em que mal se entendia nada. Ah, esses melhor se sabiam se
mudos sendo. Dei brado. Indaguei dum. Tomou um esforço de beira de
coragem, para me responder. Esse aquele era o do chapéu
encartuchado, rapaz moço. Respondeu que Sinfrônio se chamava! e
indicou outro ― que era o pai. Aquele outro, o pai, era um homem
sem pescoço. Respondeu que se chamava Assunciano. E indicou outro.
Mais adiante não deixei. Deixasse, iam de dedo em dedo me passando
para o daquelas pernas de fora, que Osirino era, as pernas forradas
de lama seca; ou para o que coçava suas costas em pau de árvore,
feito um bezerro ou um porco. Vislí a sorrateira malícia nos jeitos
deles. E mais o do jegue ― no jegue amontado, permanecendo de
perfil, aquele bronzeado jumento ― que tinha, o homem por nome
Teofrásio; e só não desamontava do jegue por ordem minha, que em
antes eu tinha dado. Ele me disse! ― Dou louvor. Em tudo, chefe,
vos obedecemos... ― ele disse; e de lá se virou o focinho branco
do jumento. O homem Teofrásio limpou a goela; mas com respeito. ―
Assim vós prazido, chefe. Pedimos vossa benção... E eu concedi ―
que o Teofrásio, meio chefim deles, o do jegue! que o jegue pudesse
trazer. Daí houve porém. Que um, o sem pescoço, baixinho
descoroçoou, na desengraça, observou! ― ...Quem é que vai tomar
conta das famílias da gente, nesse mundão de ausências? Quem cuida
das rocinhas nossas, em trabalhar pra o sustento das pessoas de
obrigação?... O que falou, tinha falado por todos. ― ...Pra os
roçados? Pra os plantios... E mesmo um outro, de mãos postas como
que para rezar, choramingou! ― Dou de comer à mea mulé e trêis
fio, em debaixo de meu sapé... ― e era um homem alto, espingolado,
com todos os remendos em todos os molambos. ― Como é a tua graça,
seô? ― indaguei. Se chamava Pedro Comprido. Mas, aí, eu já tinha
pensado. ― Pois vamos! As famílias capinam e colhem, completo,
enquanto vocês estiverem em glórias, por fora, guerreando para
impór paz inteira neste sertão e para obrar vingança pela morte
atraiçoada de Joca Ramiro!... ― eu determinei. ― Ij Maria, é
ver, nós, de Cristo, jagunceando... ― escutei, dum. Daí, declarei
mais: ― Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e
objetos e as vantagens, de toda valia. E só vamos sossegar quando
cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três
mulheres, moças sacudidas, p ra o renovame de sua cama ou rede!...
Ah, ó gente, oh e eles: que todos, quase todos, geral, reluzindo
aprovação. Mesmo os meus homens. Fiz gesto, com meu contentamento.
Queria o que só me faltou ― que foi que o jumento do homem
zurrasse. Eu ia transformar os regimentos desses foros. Convoquei
todos nas armas. ― E o Borromeu? E o Borromeu? ― ainda
perguntavam. Quem era que esse Borromeu? Mandei vir. Um cego; ele era
muito amarelo, escreiento, transformado.
― Responde, tu velho, Borromeu: que
é que tu faz? ― Estou no meu canto, cá, meu senhor... Estou me
acostumando com o momentozinho de minha morte... Cego, por ser cego,
ele tinha direito de não tremer. ― Tu é devoto? ― Pecador pior.
Pecador sem o que fazer, pede preto, pede padre... Apontou com o
dedo. Levei os olhos. Não vi nada. E assim, a esmo, que os cegos
fazem. Aquele era o bom rumo do Norte. ― Ah, meu senhor, eu sei é
pedir muitas esmolas... Pois, então, que viesse também o Borromeu,
viesse. Mandei que montassem o dito num cavalo manso, que da banda da
minha mão direita devia sempre de se emparelhar. Alguns riram. E,
pelo que riram, de certo não sabiam ― que um desses, viajando
parceiro com a gente, adivinha a vinda das pragas que outros rogam, e
vão defastando o mau poder delas; conforme aprendi dos antigos. E,
por nada, mais me lembrei, de repentinamente, do menino pretozinho,
que na casa do Valado a gente tinha surpreendido, que furtando num
saco o que achava fácil de carregar. E tiveram de campear esse
menino. Ele estava amoitado, o tempo todo, com a boca no chão, no
meio do mandiocal. Quando foi pego, xingava, mordia e perneava. Ele
se chamava Guirigó; com olhares demais, muito espertos. ― Guirigó,
tu vem vestido, ou nú? Como que não vinha? Aprontaram um cavalo
para ele só, que devia de se emparelhar com o meu, da banda de minha
mão esquerda. Há-de há, meu povo! Todos tocamos. Cavalos que
chegassem, bastados, tinha não! mas, por diante, animais alheios a
gente topasse, para se assenhorear, a laço e mãos. Os muitos vinham
a pé, aqueles catrumanos ainda meio vigiados. Ver o seguinte. Eu
queria esses campos. Pernoitamos, com marcha de dez léguas, assim
mesmo. Terçando um total de projetos, com os entusiasmos, no topo da
cabeça minha, poder não pude dormir, mesmo com o cansaço em que
estava, na noite não preguei os olhos. Mas conversei surgidamente
com os que paravam, espalhados, de sentinelas, e mandei acender
foguinhos de assar mandioca e fogueiras de iluminar. Ah, a gente ia
encher os espaços deste mundo adiante.
Aonde é que jagunço ia? A vã, à
vã. Tinha minha vontade, de estar em toda a parte. Mas, quadrando
que primeiro, mais para o norte! para o Chapadão do Urucúia, aonde
tanto boi berra. Que eu recordava de ver o rio meu ― beber em beira
dele uma demão d’água... Ah, e essas estradas de chão branco,
que dão mais assunto à luz das estrelas. Eu pensei, eu quis. E o
Hermógenes, os Judas? Ara, inimigo, o senhor dê um passo, em rumo
qualquer, lá em sua frente o senhor encontra o mau... Eu não tinha
todo tempo? Safra em cima, eu em minha lordeza. Mesmo deitado, eu
sentia que estava caminhando, galopando. Quando a madrugada bateu as
asas, eu já estava abotoando a espora. Outra vez, eu digo: tem botim
novo flote, e chinelo velho redomão. O dia ia ser lindo de leveza! ―
pelas beiradas do céu. Forramos o estómago; e saímos, deslizando
com a manhã, com o merujo do orvalho. O que eu via: alto de mata e
além! As coisas todas eu pensava, e nada nenhuma não me sombreasse.
Algum medo não palpitava frio por detrás de meus olhos; e, por via
disso, eu de todos era o chefe, mesmo em silêncio singular. Conforme
assim, chegamos, no Pé-da-Pedra, fazenda da Barbaranha. Em perto de
sete léguas. E o que aí foi, lhe conto.
Ao entrementes, eu achei graça: em
que o Alaripe, João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, e mesmo
Diadorim, e outros mais velhos, não carecessem de formar conselho.
As lérias. Meu direito era contrariar as regras todas do chefe que
antes fora; para mim, só mesmo o que servia era à solta a lei da
acostumação. Aí, não viessem me dizer que a gente estava só com
três dias de farinha e carne-seca. Toleima. Todo boi, enquanto vivo,
pasta. Razão e feijão, todo dia dão de renovar. A coragem que não
faltasse; para engulir, a pólpa de buriti e carnes de rês brava. As
léguas, eu indo, eles me seguindo. ― Tu está vendo o tamanho do
mundo, Guirigó? Que é que tu acha de maior boniteza? Assim eu
perguntei, àquele sacizinho de duas pernas, que preto reluzente
afora os graúdos olhos brancos, me remedindo, da banda de minha mão
canhota sempre viesse, encarapitado sobre seu alto cavalo. E ele, a
cuja senvergonhice: ― De todas as coisas, boniteza melhor é dessa
faquinha enterçada, de metal, que o senhor travessa na cintura...
Segundo tinha botado desejo no meu punhal puxável de cabo de prata,
o dioguim. ― A pois: no primeiro fogo que se der, se tu não abrir
boca e choro bué, por medos, a dita faca tu ganha, presenteada... ―
eu prometi. A falta de mantimentos, por isso eu ia encurtar rédeas,
travar o passo? A toleima. A outra receita que descumpri, era a de
repar tir o pessoal em turmas. Cautelas... Que não. Eu fosse ter
cautela, pegava medo, mesmo só no começar. Coragem é matéria
doutras praxes. Aí o crer nos impossíveis, só. ― Seo Borromeu,
está gostando destes Gerais, hem seo Borromeu? ― ao cego, da minha
outra banda, perguntei, por desfrute. ― Ah, Chefe! é sempre
amanhecendo manhã, e aqui a gente merece tudo ― vento que não
varêia de ser... Mas vento que vem dos amáveis... ― ele me
respondeu. ― ...O que não vejo, não devo; não consumo... ―
continuou respondendo. Ele gostava de conversar, mas também
preparava no silêncio. Ia sacolejando em cima da sela do animal,
noutra quietação diversa. Podia dar conselho? ― Arte de jagunço,
meu Chefe? Isto é ofício bonito, para o vivo. O ditado desses, só
somente para rir eu aceitava. Mas, dividir minha gente, por oras, eu
detestava de obrar. Por causa que o que me prazia mais era contemplar
o volume profundo da ida deles, de esquadrão.
[...]
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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