Discurso ao receber o prêmio
Friedenspreis
Presidente Johannes Rau, ministro do
Interior Otto Schily, ministra da Cultura Christina Weiss, prefeita
de Frankfurt Petra Roth, vice-presidente do Bundestag Antje Vollmer,
Vossas Excelências, outros convidados ilustres, colegas honrados,
amigos... entre eles, caro Ivan Nagel:
Falar na Paulskirche,* diante de tal
platéia, receber o prêmio conferido nos últimos cinqüenta e três
anos pela Câmara Alemã do Livro a tantos escritores, pensadores e
figuras públicas exemplares que eu admiro — falar, como digo,
neste lugar impregnado de história e nesta ocasião, é uma
experiência inspiradora e um exercício de humildade. Portanto, só
posso lamentar mais ainda a ausência proposital do embaixador
americano, senhor Daniel Coats, cuja recusa imediata, em junho, do
convite da Câmara do Livro, quando foi anunciado o prêmio
Friedenspreis deste ano, para comparecer à nossa reunião aqui hoje,
mostra que ele está mais interessado em confirmar a posição
ideológica e a reação rancorosa do governo Bush do que, cumprindo
um dever diplomático normal, representar os interesses e a reputação
do seu — e do meu — país.
O embaixador Coats optou por não
estar aqui, suponho, em razão das críticas que manifestei em
jornais e em entrevistas na tevê e em pequenos artigos em revistas,
sobre a nova tendência radical da política externa americana,
exemplificada pela invasão e ocupação do Iraque. Ele deveria estar
aqui, creio, porque uma cidadã do país que ele representa na
Alemanha foi condecorada com um prêmio alemão importante.
Um embaixador americano tem o dever de
representar o seu país, todo ele. Eu, é claro, não represento os
Estados Unidos, nem mesmo essa minoria considerável que não apóia
o programa imperial do senhor Bush e seus conselheiros. Gosto de
pensar que não represento nada, exceto a literatura, certa ideia de
literatura, e a consciência, certa ideia de consciência ou dever,
porém, ciente da honraria expressa neste prêmio concedido por um
importante país europeu, que se refere ao meu papel como o de uma
“embaixatriz intelectual” que lança uma ponte entre os dois
continentes (embaixatriz no sentido mais fraco possível, meramente
metafórico, nem é preciso dizer), não posso deixar de apresentar
umas poucas reflexões sobre o renomado abismo entre a Europa e os
Estados Unidos, que meus interesses e meu entusiasmo supostamente
unem por meio de uma ponte.
Primeiro, trata-se de fato de um
abismo — que continua a ser ligado por uma ponte? Ou não será
isso também um conflito? Declarações coléricas, desdenhosas, a
respeito da Europa, de certos países europeus, são agora moeda
corrente na retórica política americana; e aqui, pelo menos nos
países ricos do lado ocidental do continente, os sentimentos
antiamericanos estão mais comuns, mais audíveis, mais destemperados
do que nunca. O que é esse conflito? Tem raízes profundas? Creio
que sim.
Sempre existiu um antagonismo latente
entre a Europa e os Estados Unidos, tão complexo e ambivalente pelo
menos quanto entre pai e filho. Os Estados Unidos são um país
neo-europeu e, até as últimas décadas, foi amplamente povoado por
povos europeus. Todavia, sempre foram as diferenças entre a Europa e
os Estados Unidos que mais chocaram os observadores europeus mais
sagazes: Alexis de Tocqueville, que visitou a jovem nação em 1831 e
voltou à França para escrever o livro Democracia na América,
ainda agora, cerca de cento e setenta anos depois, o melhor livro que
existe sobre o meu país, e D. H. Lawrence, que oitenta anos atrás
publicou o livro mais interessante jamais escrito sobre a cultura
americana, o seu influente, irritante, Estudos sobre a literatura
clássica americana, ambos compreenderam que os Estados Unidos,
filhos da Europa, estavam se tornando, ou haviam se tornado, a
antítese da Europa.
Roma e Atenas, Marte e Vênus. Os
autores dos recentes tratados que preconizam a idéia do inevitável
confronto de interesses entre a Europa e os Estados Unidos não
inventaram essas antíteses. Estrangeiros refletiram sobre elas — e
elas forneceram a paleta, a melodia recorrente, em boa parte da
literatura americana do século xix, desde James Fenimore Cooper e
Ralph Waldo Emerson até Walt Whitman, Henry James, William Dean
Howells e Mark Twain. A inocência americana e a afetação européia;
o pragmatismo americano e o intelectualismo europeu; a energia
americana e o tédio europeu; a ingenuidade americana e o ceticismo
europeu; o bom coração americano e a malícia européia; o
moralismo americano e a arte da tolerância européia — os senhores
conhecem essas músicas.
Elas podem ser coreografadas de
diferentes modos; de fato, foram dançadas com toda sorte de
valoração ou inclinação durante dois séculos tumultuados. Os
eurófilos podem usar as venerandas antíteses a fim de identificar
os Estados Unidos com o barbarismo guiado pelo comércio e a Europa
com a cultura elevada, ao passo que os eurófobos apóiam-se numa
visão pré-fabricada na qual os Estados Unidos representam o
idealismo, a abertura, a democracia, e a Europa, o refinamento esnobe
e estiolador. Tocqueville e Lawrence observaram algo mais brutal: não
apenas uma declaração de independência da Europa e dos valores
europeus, mas uma firme impugnação, um assassinato dos valores e do
poder europeus. “Nunca se pode ter uma coisa nova sem quebrar uma
velha”, escreveu Lawrence. “Aconteceu de a Europa ser a coisa
velha. Os Estados Unidos [...] tinham de ser a coisa nova. A coisa
nova é a morte da velha.” Os Estados Unidos, adivinhou Lawrence,
estavam numa missão de destruir a Europa, usando a democracia —
sobretudo a democracia cultural, a democracia dos costumes — como
instrumento. E quando essa tarefa estiver concluída, prosseguiu ele,
os Estados Unidos poderão perfeitamente desviar-se da democracia
rumo a uma outra coisa. (O que pode ser isso está, talvez, vindo à
tona agora.)
Tenham paciência comigo se minhas
referências foram exclusivamente literárias. Afinal, uma função
da literatura — da literatura importante, da literatura necessária
— é ser profética. O que temos aqui, de forma amplificada, é o
perpétuo debate — literário ou cultural — entre os antigos e os
modernos.
O passado é (ou foi) a Europa, e os
Estados Unidos alicerçavam-se na idéia de romper com o passado,
visto como um estorvo, um peso morto, e — em suas formas de
deferência e superioridade, em seus critérios do que é superior e
do que é melhor — fundamentalmente não democrático; ou
“elitista”, o sinônimo corrente predominante. Aqueles que falam
de uma América triunfal continuam a sugerir que a democracia
americana implica repudiar a Europa e, sim, abraçar certo barbarismo
liberador e salutar. Se hoje a Europa é vista pela maioria dos
americanos como mais socialista do que elitista, isso ainda faz da
Europa, pelos padrões americanos, um continente retrógrado,
obstinadamente preso a padrões antigos: o Estado do bem-estar
social. “Renovar” não é só um lema da cultura; também define
uma máquina econômica que se move sempre para a frente e que
abrange o mundo inteiro.
No entanto, se necessário, mesmo o
“velho” pode ser rebatizado como “novo”.
Não é por coincidência que o tenaz
secretário de Defesa americano tenha tentado abrir uma cunha dentro
da Europa — traçando a distinção, de forma memorável, entre a
Europa “velha” (ruim) e a Europa “nova” (boa). Como é que a
Alemanha, a França e a Bélgica vieram a ser classificadas de Europa
“velha”, ao passo que a Espanha, a Itália, a Polônia, a
Ucrânia, a Holanda, a Hungria, a República Checa e a Bulgária se
viram incluídas na Europa “nova”? Resposta: apoiar os Estados
Unidos nas suas atuais ampliações do poder político e militar é,
por definição, passar para a categoria mais desejável do “novo”.
Quem estiver conosco é “novo”.
Todas as guerras modernas, mesmo
quando seus objetivos são os tradicionais, como ampliação
territorial ou obtenção de recursos escassos, são pintadas como
confrontos de civilizações — guerras de culturas —, em que cada
um dos lados declara ocupar a posição mais elevada, enquanto o
outro é visto como bárbaro. O inimigo é sempre uma ameaça ao
“nosso modo de vida”, um infiel, um profanador, um conspurcador,
um corruptor de valores mais elevados e melhores. A guerra atual
contra a ameaça muito real representada pelo fundamentalismo
islâmico é um exemplo particularmente claro. O que vale a pena
ressaltar é que uma versão mais branda dos mesmos termos de
desqualificação se encontra subjacente no antagonismo entre a
Europa e os Estados Unidos. Devemos também lembrar que,
historicamente, a retórica antiamericana mais virulenta que já se
ouviu na Europa — que consistia, em essência, na acusação de que
os americanos são bárbaros — proveio não da chamada esquerda,
mas sim da extrema direita. Tanto Hitler quanto Franco imprecavam
repetidamente contra os Estados Unidos (e um judaísmo mundial),
empenhados em corromper a civilização europeia com seus vis valores
mercantis.
Obviamente, boa parte da opinião
pública européia continua a admirar a energia americana, a versão
americana do “moderno”. E sem dúvida sempre houve americanos
companheiros de viagem dos ideais culturais europeus (um deles está
aqui, diante dos senhores), que vêem na antiga arte da Europa a
correção e uma liberação dos tenazes preconceitos mercantis da
cultura americana. E sempre houve as contrapartes de tais americanos:
europeus fascinados, subjugados, profundamente atraídos pelos
Estados Unidos, justamente por causa da sua diferença em relação à
Europa.
O que os americanos veem é quase o
contrário do clichê eurófilo: veem-se defendendo a civilização.
As hordas bárbaras não estão mais do outro lado dos portões.
Estão do lado de dentro, em todas as cidades prósperas, tramando a
devastação. Os países “fabricantes de chocolate” (França,
Alemanha, Bélgica) terão de ficar de fora, enquanto um país de
“vontade” — e com Deus do seu lado — trava a batalha contra o
terrorismo (agora fundido com a barbárie). Segundo o secretário de
Estado Colin Powell, é ridículo para a Europa “velha” aspirar a
algum papel no governo ou na administração dos territórios
conquistados pela coalizão do conquistador. A ela faltam tanto os
meios militares quanto o gosto pela violência e o apoio de seus
protegidos, todos eles povos demasiado pacíficos. Já os americanos
têm tudo à mão. Os europeus não estão no espírito evangélico —
ou belicoso.
De fato, às vezes tenho de me
beliscar para ter certeza de que não estou sonhando: aquilo que
muitos em meu próprio país agora condenam na Alemanha, a qual
desencadeou tantos horrores pelo mundo ao longo de quase um século —
o novo “problema alemão”, por assim dizer —, é que os alemães
sentem repulsa pela guerra; que grande parte da opinião pública
alemã é agora quase pacifista!
Mas será que os Estados Unidos e a
Europa nunca foram parceiros, nunca foram amigos? Claro. Mas talvez
seja verdade que os períodos de união — de sentimento comum —
foram exceções, e não a regra. Um momento assim ocorreu entre a
Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, quando os europeus
sentiam-se profundamente gratos pela intervenção, pelo socorro e
pelo apoio americanos. Os americanos sentem-se confortáveis ao
retratarem a si mesmos como os salvadores da Europa. No entanto os
Estados Unidos querem que os europeus sejam gratos para sempre, e não
é isso o que os europeus sentem agora. Do ponto de vista da Europa
“velha”, os Estados Unidos parecem inclinados a malbaratar a
admiração — e a gratidão — sentida pela maioria dos europeus.
A imensa solidariedade com os Estados Unidos no rescaldo do ataque do
dia 11 de setembro de 2001 era genuína. (Posso dar testemunho do seu
inequívoco ardor e sinceridade na Alemanha; eu estava em Berlim, na
época.) Mas o que se seguiu foi um crescente estranhamento de ambas
as partes.
Os cidadãos da nação mais rica e
mais poderosa da história têm de saber que os Estados Unidos são
amados, invejados... e que são objeto de ressentimento. Muitas
pessoas que viajam para o exterior sabem que os americanos são
vistos por muitos europeus como rudes, grosseiros, incultos, e não
hesitam em responder a tais expectativas com um comportamento que
sugere o ressentimento de ex-colonizados. E alguns europeus cultos
que parecem ter o maior apreço em visitar ou em residir nos Estados
Unidos atribuem a isso, de maneira condescendente, o ambiente
liberador de uma colônia onde é possível desvencilhar-se das
coerções e do fardo da alta cultura da “terra natal”. Lembro-me
de ter ouvido de um cineasta alemão, na ocasião residente em San
Francisco, que ele adorava viver nos Estados Unidos “porque aqui
não existe nenhuma cultura”. Para não poucos europeus, inclusive,
cumpre mencionar, D. H. Lawrence (“Lá a vida provém das raízes,
rudes, porém vitais”, escreveu ele para um amigo em 1915, quando
fazia planos de ir morar nos Estados Unidos), os Estados Unidos eram
a grande evasão. E vice-versa: a Europa foi a grande evasão para
gerações de americanos em busca de “cultura”. Claro, estou
falando aqui só de minorias, minorias entre os privilegiados.
Portanto, os Estados Unidos agora veem
a si mesmos como os defensores da civilização e os salvadores da
Europa e não entendem por que os europeus não se dão conta disso;
e os europeus veem os Estados Unidos como um temerário Estado
guerreiro — imagem a que os americanos reagem vendo a Europa como
inimiga dos Estados Unidos: ela apenas finge ser pacifista a fim de
ajudar o enfraquecimento do poder dos Estados Unidos, assim reza a
retórica que se ouve cada vez mais nos Estados Unidos. A França, em
especial, é vista como se conspirasse para equiparar-se aos Estados
Unidos, ou mesmo suplantá-los, na condução dos assuntos mundiais —
“A operação América tem de dar errado” é o nome inventado por
um colunista do New York Times para definir o ímpeto francês rumo à
posição dominante —, em vez de compreender que uma derrota
americana no Iraque (nas palavras do mesmo colunista) irá estimular
“grupos muçulmanos radicais — de Bagdá até os bairros pobres
muçulmanos de Paris” a insistirem na sua jihad contra a
tolerância e a democracia.
É difícil para as pessoas não
enxergarem o mundo em termos polarizados (“eles” e “nós”), e
no passado esses termos reforçaram o teor isolacionista na política
externa americana, assim como agora reforçam o teor imperialista. Os
americanos se habituaram a pensar o mundo em termos de inimigos. Os
inimigos estão em outra parte, assim como os combates estão quase
sempre “lá longe”, com o fundamentalismo islâmico agora tomando
o lugar do comunismo russo ou chinês no papel de uma ameaça
implacável e sorrateira. E “terrorista” é uma palavra mais
flexível do que “comunista”. Pode unificar um número maior de
lutas e interesses muito diversos. Isso pode significar que a guerra
é interminável — pois sempre vai existir algum terrorismo (como
sempre vai haver pobreza e câncer); ou seja, sempre existirão
conflitos assimétricos em que o lado mais fraco usa essa forma de
violência, que em geral tem por alvo os civis. A retórica
americana, que não coincide necessariamente com a opinião pública,
daria apoio a essa perspectiva deplorável, pois a luta pelo que é
correto nunca tem fim.
Está de acordo com a índole dos
Estados Unidos, país profundamente conservador a um ponto que a
Europa tem dificuldade em compreender, ter elaborado uma forma de
pensamento conservador que celebra o novo em vez do velho. Mas isso
também significa dizer que, da mesma forma que os Estados Unidos
parecem extremamente conservadores — por exemplo, o extraordinário
poder do consenso, a passividade e o conformismo da opinião pública
(como Tocqueville observou em 1831) e da mídia —, são também
radicais, e até revolucionários, de um modo que a Europa tem
igualmente dificuldade em compreender.
Parte do enigma, sem dúvida, repousa
na ausência de nexo entre a retórica oficial e a realidade vivida.
Os americanos estão constantemente exaltando as “tradições”;
as ladainhas em louvor dos valores da vida familiar ocupam o centro
do discurso de qualquer político. No entanto a cultura dos Estados
Unidos é extremamente corrosiva da vida familiar, a rigor corrosiva
de todas as tradições, salvo aquelas redefinidas como “identidades”
que se enquadram em critérios mais amplos de distinção, cooperação
e abertura para a inovação.
Talvez a fonte mais importante do novo
(e nem tão novo) radicalismo americano seja aquilo que se costumava
encarar como a fonte dos valores conservadores: a saber, a religião.
Muitos comentaristas observaram que talvez a maior diferença entre
os Estados Unidos e a maioria dos países europeus (os velhos e
também os novos, segundo a distinção americana corrente) seja o
fato de que nos Estados Unidos a religião ainda desempenha um papel
central na sociedade e na linguagem pública. Mas trata-se de
religião no estilo americano: antes a idéia de religião do que a
religião propriamente dita.
É verdade que, durante a campanha de
Bush para a presidência em 2000, um jornalista teve a inspiração
de pedir ao candidato que dissesse o nome do seu “filósofo
favorito”, e a resposta, bem recebida — resposta que
transformaria em objeto de chacota qualquer candidato para um alto
cargo de qualquer partido de centro em qualquer país europeu — foi
“Jesus Cristo”. Mas é claro que Bush não estava falando a sério
nem foi interpretado como se estivesse dizendo que, se eleito, o seu
governo iria sentir-se de fato obrigado a cumprir os preceitos e
programas sociais pregados por Jesus.
Os Estados Unidos são uma sociedade
genericamente religiosa. Ou seja, nos Estados Unidos não importa a
qual religião você venha a aderir, contanto que tenha alguma. Ter
uma religião governante, ou mesmo uma teocracia, que fosse apenas
cristã (ou de uma denominação cristã específica) seria
impossível. A religião nos Estados Unidos tem de ser uma questão
de opção. Essa ideia de religião, moderna, relativamente sem
conteúdo, construída segundo o modelo do direito de escolha do
consumidor, é a base do conformismo americano, da sua crença na sua
superioridade moral, e do seu moralismo (que os europeus muitas vezes
confundem, de forma condescendente, com puritanismo). Quaisquer que
sejam as crenças históricas que as diversas entidades religiosas
americanas professam representar, todas pregam algo semelhante: a
reforma do comportamento pessoal, o valor do sucesso, a cooperação
comunitária, a tolerância com as opções dos outros (virtudes que
impulsionam e abrem caminho para o funcionamento do capitalismo de
consumo). O próprio fato de ser religioso assegura a
respeitabilidade, promove a ordem e garante as intenções virtuosas
da missão dos Estados Unidos de liderar o mundo.
O que é propagado — quer se chame
democracia, liberdade ou civilização — é parte de uma obra em
andamento, bem como a essência do progresso em si. Em nenhum outro
lugar do mundo o sonho de progresso do Iluminismo encontrou um
ambiente tão fértil como nos Estados Unidos.
Então, será que estamos mesmo tão
separados assim? É estranho que, exatamente na hora em que a Europa
e os Estados Unidos são, culturalmente, mais semelhantes do que
nunca, se verifica uma separação maior do que nunca.
Todavia, a despeito de todas as
semelhanças na vida cotidiana dos cidadãos dos países ricos
europeus e dos americanos, o abismo entre a experiência européia e
a americana é autêntico, fundado em relevantes diferenças de
história, de idéias sobre o papel da cultura, de memórias reais e
imaginárias. O antagonismo — pois existe antagonismo — não será
resolvido no futuro imediato, apesar de toda a boa vontade de muita
gente de ambos os lados do Atlântico. Contudo, só podemos lamentar
aqueles que desejam exacerbar tais diferenças quando temos tanto em
comum.
O predomínio dos Estados Unidos é um
fato. Mas os Estados Unidos, como o atual governo começa a perceber,
não podem fazer tudo sozinhos. O futuro de nosso mundo — o mundo
que compartilhamos — é sincretista, impuro. Não estamos isolados
uns dos outros. Fundimo-nos cada vez mais uns aos outros.
No fim, o modelo para qualquer
entendimento — conciliação — que podemos alcançar repousa em
refletir mais a respeito da veneranda oposição “velho” e
“novo”. A oposição entre “civilização” e “barbárie”
é essencialmente arbitrária; pensar nela e falar a seu respeito de
forma categórica é algo corruptor — por mais que ela possa
refletir certas realidades inegáveis. Mas a oposição “velho” e
“novo” é genuína, inerradicável, está no centro do que
entendemos como a experiência em si mesma.
“Velho” e “novo” são os pólos
permanentes de todo sentimento e de todo sentido de orientação no
mundo. Não podemos viver sem o velho, porque no velho se encontra
investido todo o nosso passado, nossa sabedoria, nossas memórias,
nossa tristeza, nosso sentido de realismo. Não podemos viver sem a
fé no novo, porque no novo se encontra investida toda a nossa
energia, nossa capacidade de otimismo, todo o nosso cego anseio
biológico, nossa capacidade de esquecer — o dom de curar que torna
possível toda reconciliação.
A vida interior tende a desconfiar do
novo. Uma vida interior desenvolvida com vigor será especialmente
refratária ao novo. Dizem-nos que temos de escolher — o velho ou o
novo. Na verdade, temos de escolher ambos. O que é uma vida, senão
uma série de transições entre o velho e o novo? Parece-me que
deveríamos sempre nos empenhar em escapar dessas oposições
inflexíveis.
Velho versus novo, natureza
versus cultura — talvez seja inevitável que os grandes
mitos da nossa vida cultural sejam representados como geografia, e
não só como história. Porém eles são mitos, clichês,
estereótipos, e nada mais; a realidade é muito mais complexa.
Boa parte da minha vida foi dedicada a
tentar desmistificar maneiras de pensar que polarizam e opõem.
Traduzido em política, isso significa favorecer o que é pluralista
e secular. A exemplo de alguns americanos e europeus, gostaria muito
mais de viver num mundo multilateral — um mundo que não fosse
dominado por nenhum país (o meu inclusive). Num século que já
promete ser mais um século de excessos, de horrores, eu poderia
expressar o meu apoio a todo um arsenal de princípios melioristas —
em especial, aquilo que Virginia Woolf chama de “virtude
melancólica da tolerância”.
Em vez disso, permitam-me falar
primeiro como escritora, como uma defensora da missão da literatura,
pois aí repousa minha única autoridade.
A escritora que há em mim desconfia
da boa cidadã, da “embaixatriz intelectual”, da ativista dos
direitos humanos — papéis mencionados na apresentação deste
prêmio, por mais que eu me empenhe neles. A escritora é mais
cética, tem mais dúvidas a respeito de si mesma, do que a pessoa
que tenta fazer (e apoiar) o que é certo.
Uma das tarefas da literatura é
questionar e construir contra-afirmações às crenças dominantes. E
mesmo quando a arte não é de oposição, as artes gravitam rumo à
contrariedade. Literatura é diálogo; receptividade. A literatura
pode ser definida como a história da receptividade humana em relação
ao que está vivo e ao que está moribundo, à medida que as culturas
se desenvolvem e interagem umas com as outras.
Os escritores podem fazer alguma coisa
para combater esses clichês sobre a nossa separação, a nossa
diferença — pois escritores são criadores, não só
transmissores, de mitos. A literatura oferece não só mitos, mas
contramitos, assim como a vida oferece contra-experiências —
experiências que perturbam aquilo que pensávamos pensar, sentir ou
acreditar.
Um escritor, quero crer, é alguém
que presta atenção no mundo. Isso significa que ele tenta
compreender, assimilar, incorporar qualquer maldade que os seres
humanos são capazes de praticar, e não se corromper — tornar-se
cínico, superficial — por conta de tal compreensão.
A literatura pode nos dizer como o
mundo parece ser.
A literatura pode fornecer critérios
e transmitir um conhecimento profundo, encarnado na língua, na
narrativa.
A literatura pode treinar, exercitar,
a nossa capacidade de chorar por aqueles que não são nós, nem
nossos.
Quem seríamos se não pudéssemos
sentir solidariedade com aqueles que não são nós, nem nossos? Quem
seríamos se não pudéssemos esquecer a nós mesmos, pelo menos uma
parte do tempo? Quem seríamos se não pudéssemos aprender? Perdoar?
Tornar-nos-íamos outra pessoa, que não nós mesmos?
No momento em que recebo este prêmio
glorioso, este glorioso prêmio alemão, permitam-me contar algo da
minha própria trajetória.
Sou da terceira geração americana de
descendentes de judeus poloneses e lituanos e nasci duas semanas
antes de Hitler chegar ao poder. Cresci em regiões provincianas dos
Estados Unidos (Arizona e Califórnia), longe da Alemanha e, contudo,
minha infância inteira foi assombrada pela Alemanha, pela
monstruosidade da Alemanha, pelos livros alemães e pela música
alemã, que eu adorava, e que estabeleceu o meu padrão do que é
elevado e profundo.
Ainda antes de Bach, Beethoven,
Mozart, Schubert e Brahms, houve alguns livros alemães. Estou
pensando num professor numa escola primária numa pequena cidade no
sul do Arizona, o senhor Starkie, que espantava os seus alunos
contando que havia lutado no Exército de Pershing, no México,
contra Pancho Villa: esse veterano de uma antiga aventura
imperialista americana, ao que parece, sentiu-se tocado, em tradução,
pelo idealismo da literatura alemã e, ao se dar conta da minha fome
especial de livros, emprestou-me seus exemplares de Os sofrimentos do
jovem Werther e Immensee.
Pouco depois, na minha orgia infantil
de leitura, o acaso levou-me a outros livros alemães, inclusive Na
colônia penal, de Kafka, onde descobri o pavor e a injustiça.
Poucos anos mais tarde, quando eu era aluna do ensino médio, em Los
Angeles, descobri tudo da Europa num romance alemão. Nenhum livro
foi mais importante na minha vida do que A montanha mágica — cujo
tema é, exatamente, o choque dos ideais que estão no cerne da
civilização europeia. E assim por diante, no decorrer de uma vida
longa, impregnada da alta cultura alemã. De fato, depois dos livros
e da música, que, em função do deserto cultural em que eu vivia,
foram experiências quase clandestinas, vieram as experiências
reais. Pois sou também uma tardia beneficiária da diáspora
cultural alemã e tive a felicidade de conhecer bem alguns dos
refugiados de Hitler incomparavelmente talentosos, os escritores,
artistas, músicos e professores que os Estados Unidos receberam na
década de 1930 e que tanto enriqueceram o país, sobretudo as
universidades. Permitam-me que cite o nome de dois deles, que tive o
privilégio de ter como amigos entre o fim da adolescência e os meus
vinte e poucos anos: Hans Gerth e Herbert Marcuse; aqueles com quem
tive aula na Universidade de Chicago e em Harvard: Christian
Mackauer, Leo Strauss, Paul Tillich, Peter Heinrich von
Blanckenhagen, e em seminários particulares, Aron Gurwitsch e Nahum
Glatzer; e Hannah Arendt, a quem conheci depois que me mudei para
Nova York, por volta dos meus vinte e cinco anos — são muitos os
modelos de seriedade, cuja memória eu gostaria de evocar aqui.
Mas nunca esquecerei que o meu
envolvimento com a cultura alemã, com a seriedade alemã, começou
com o obscuro e excêntrico senhor Starkie (acho que eu nunca soube o
seu prenome), meu professor quando eu tinha dez anos de idade e que
nunca mais voltei a ver.
E isso me leva a uma história, com a
qual concluo — de modo apropriado, ao que parece, pois não sou
prioritariamente nem embaixatriz cultural nem crítica ferrenha do
meu próprio governo (tarefa que desempenho como uma boa cidadã
americana). Sou contadora de histórias.
Assim, lá estava eu aos dez anos de
idade, e encontrava algum alívio das enfadonhas tarefas de ser
criança queimando as pestanas sobre os surrados volumes de Goethe e
Storm que pertenciam ao senhor Starkie. Ao mesmo tempo, estou me
referindo ao ano de 1943, quando eu tinha consciência de que havia
um campo de prisioneiros com milhares de soldados alemães —
soldados nazistas, como eu obviamente pensava neles — na região
norte do estado, eu sabia que era judia (ainda que só formalmente,
pois meus familiares eram totalmente seculares e assimilados já
fazia duas gerações; mas, formalmente, eu sabia, isso já era o
suficiente para os nazistas), e eu era perseguida por um pesadelo
recorrente em que soldados nazistas fugiam da prisão, conseguiam
chegar até a cidade onde eu morava, com minha mãe e minha irmã, e
estavam à beira de me matar.
Vamos dar um salto para muitos anos
depois disso, na década de 1970, quando meus livros começaram a ser
publicados pela editora Hanser Verlag e conheci o ilustre Fritz
Arnold (ele havia ingressado na empresa em 1965), que foi o meu
editor na Hanser até sua morte, em 1999.
Numa das primeiras ocasiões em que
estivemos juntos, Fritz disse que queria me contar — supondo,
presumo, que isso fosse um pré-requisito para qualquer amizade que
pudesse surgir entre nós — o que ele tinha feito durante a guerra.
Garanti-lhe que não me devia nenhuma explicação desse tipo; mas, é
claro, fiquei comovida por ele ter levantado o assunto. Devo
acrescentar que Fritz Arnold não foi o único alemão ou alemã da
sua geração (ele nasceu em 1916) que, pouco depois de me conhecer,
insistiram em contar o que tinham feito durante a época dos
nazistas. E nem todas as histórias eram inocentes como a que ouvi de
Fritz.
De todo modo, Fritz me contou que era
estudante universitário de literatura e história da arte, primeiro
em Munique, depois em Colônia, quando, no início da guerra, foi
convocado para a Wehrmacht, com o posto de cabo. Sua família, é
claro, nada tinha de pró-nazista — seu pai era Karl Arnold, o
célebre cartunista político de Simplicissimus —, mas a
emigração parecia algo fora de questão e ele aceitou, com temor, a
convocação para o serviço militar, com a esperança de não matar
nem ser morto.
Fritz foi um dos que tiveram sorte.
Sorte de ter ficado primeiro em Roma (onde rejeitou o convite do seu
superior para ser promovido a tenente), depois em Túnis; teve muita
sorte ao ficar por trás das linhas e nunca ter disparado uma arma; e
por fim a sorte, se essa é a palavra correta, de ter sido feito
prisioneiro pelos americanos em 1943, levado de navio para o outro
lado do Atlântico junto com outros soldados alemães capturados, até
Norfolk, na Virgínia, e depois transportado de trem para o outro
lado do continente, onde passou o resto da guerra num campo de
prisioneiros... no norte do Arizona.
Assim tive o prazer de contar a ele,
suspirando de espanto, pois eu já começara a sentir um grande
carinho por aquele homem — isso foi o início de uma grande
amizade, bem como de uma profunda relação profissional —, que
enquanto ele era prisioneiro de guerra no norte do Arizona, eu estava
no sul do estado, aterrorizada com os soldados nazistas que estavam
lá, aqui, e dos quais não havia como fugir.
E então Fritz me contou que o que lhe
permitiu resistir durante os quase três anos no campo de
prisioneiros no Arizona foi a autorização de ler livros: ele passou
aqueles anos lendo e relendo os clássicos americanos e ingleses. E
eu lhe contei que o que me salvou quando eu era estudante no Arizona,
à espera de crescer, à espera da hora de fugir para uma realidade
mais ampla, foi ler livros, livros traduzidos e também escritos
originalmente em inglês.
Ter acesso à literatura, à
literatura do mundo, era escapar da prisão da futilidade nacional,
da vulgaridade, do provincianismo compulsório, do ensino vazio, dos
destinos imperfeitos e da má sorte. A literatura era o passaporte
para entrar numa vida mais ampla; ou seja, a região da liberdade.
Literatura era liberdade. Sobretudo
numa época em que os valores da leitura e da introspecção são tão
tenazmente contestados, a literatura é liberdade.
*Igreja de São Paulo. Em 1848, foi
sede do primeiro Parlamento alemão eleito democraticamente. (N. E.)
Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo – Ensaios e Discursos

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