domingo, 28 de dezembro de 2025

Literatura é liberdade



Discurso ao receber o prêmio Friedenspreis
 
Presidente Johannes Rau, ministro do Interior Otto Schily, ministra da Cultura Christina Weiss, prefeita de Frankfurt Petra Roth, vice-presidente do Bundestag Antje Vollmer, Vossas Excelências, outros convidados ilustres, colegas honrados, amigos... entre eles, caro Ivan Nagel:
Falar na Paulskirche,* diante de tal platéia, receber o prêmio conferido nos últimos cinqüenta e três anos pela Câmara Alemã do Livro a tantos escritores, pensadores e figuras públicas exemplares que eu admiro — falar, como digo, neste lugar impregnado de história e nesta ocasião, é uma experiência inspiradora e um exercício de humildade. Portanto, só posso lamentar mais ainda a ausência proposital do embaixador americano, senhor Daniel Coats, cuja recusa imediata, em junho, do convite da Câmara do Livro, quando foi anunciado o prêmio Friedenspreis deste ano, para comparecer à nossa reunião aqui hoje, mostra que ele está mais interessado em confirmar a posição ideológica e a reação rancorosa do governo Bush do que, cumprindo um dever diplomático normal, representar os interesses e a reputação do seu — e do meu — país.
O embaixador Coats optou por não estar aqui, suponho, em razão das críticas que manifestei em jornais e em entrevistas na tevê e em pequenos artigos em revistas, sobre a nova tendência radical da política externa americana, exemplificada pela invasão e ocupação do Iraque. Ele deveria estar aqui, creio, porque uma cidadã do país que ele representa na Alemanha foi condecorada com um prêmio alemão importante.
Um embaixador americano tem o dever de representar o seu país, todo ele. Eu, é claro, não represento os Estados Unidos, nem mesmo essa minoria considerável que não apóia o programa imperial do senhor Bush e seus conselheiros. Gosto de pensar que não represento nada, exceto a literatura, certa ideia de literatura, e a consciência, certa ideia de consciência ou dever, porém, ciente da honraria expressa neste prêmio concedido por um importante país europeu, que se refere ao meu papel como o de uma “embaixatriz intelectual” que lança uma ponte entre os dois continentes (embaixatriz no sentido mais fraco possível, meramente metafórico, nem é preciso dizer), não posso deixar de apresentar umas poucas reflexões sobre o renomado abismo entre a Europa e os Estados Unidos, que meus interesses e meu entusiasmo supostamente unem por meio de uma ponte.
Primeiro, trata-se de fato de um abismo — que continua a ser ligado por uma ponte? Ou não será isso também um conflito? Declarações coléricas, desdenhosas, a respeito da Europa, de certos países europeus, são agora moeda corrente na retórica política americana; e aqui, pelo menos nos países ricos do lado ocidental do continente, os sentimentos antiamericanos estão mais comuns, mais audíveis, mais destemperados do que nunca. O que é esse conflito? Tem raízes profundas? Creio que sim.
Sempre existiu um antagonismo latente entre a Europa e os Estados Unidos, tão complexo e ambivalente pelo menos quanto entre pai e filho. Os Estados Unidos são um país neo-europeu e, até as últimas décadas, foi amplamente povoado por povos europeus. Todavia, sempre foram as diferenças entre a Europa e os Estados Unidos que mais chocaram os observadores europeus mais sagazes: Alexis de Tocqueville, que visitou a jovem nação em 1831 e voltou à França para escrever o livro Democracia na América, ainda agora, cerca de cento e setenta anos depois, o melhor livro que existe sobre o meu país, e D. H. Lawrence, que oitenta anos atrás publicou o livro mais interessante jamais escrito sobre a cultura americana, o seu influente, irritante, Estudos sobre a literatura clássica americana, ambos compreenderam que os Estados Unidos, filhos da Europa, estavam se tornando, ou haviam se tornado, a antítese da Europa.

Roma e Atenas, Marte e Vênus. Os autores dos recentes tratados que preconizam a idéia do inevitável confronto de interesses entre a Europa e os Estados Unidos não inventaram essas antíteses. Estrangeiros refletiram sobre elas — e elas forneceram a paleta, a melodia recorrente, em boa parte da literatura americana do século xix, desde James Fenimore Cooper e Ralph Waldo Emerson até Walt Whitman, Henry James, William Dean Howells e Mark Twain. A inocência americana e a afetação européia; o pragmatismo americano e o intelectualismo europeu; a energia americana e o tédio europeu; a ingenuidade americana e o ceticismo europeu; o bom coração americano e a malícia européia; o moralismo americano e a arte da tolerância européia — os senhores conhecem essas músicas.
Elas podem ser coreografadas de diferentes modos; de fato, foram dançadas com toda sorte de valoração ou inclinação durante dois séculos tumultuados. Os eurófilos podem usar as venerandas antíteses a fim de identificar os Estados Unidos com o barbarismo guiado pelo comércio e a Europa com a cultura elevada, ao passo que os eurófobos apóiam-se numa visão pré-fabricada na qual os Estados Unidos representam o idealismo, a abertura, a democracia, e a Europa, o refinamento esnobe e estiolador. Tocqueville e Lawrence observaram algo mais brutal: não apenas uma declaração de independência da Europa e dos valores europeus, mas uma firme impugnação, um assassinato dos valores e do poder europeus. “Nunca se pode ter uma coisa nova sem quebrar uma velha”, escreveu Lawrence. “Aconteceu de a Europa ser a coisa velha. Os Estados Unidos [...] tinham de ser a coisa nova. A coisa nova é a morte da velha.” Os Estados Unidos, adivinhou Lawrence, estavam numa missão de destruir a Europa, usando a democracia — sobretudo a democracia cultural, a democracia dos costumes — como instrumento. E quando essa tarefa estiver concluída, prosseguiu ele, os Estados Unidos poderão perfeitamente desviar-se da democracia rumo a uma outra coisa. (O que pode ser isso está, talvez, vindo à tona agora.)
Tenham paciência comigo se minhas referências foram exclusivamente literárias. Afinal, uma função da literatura — da literatura importante, da literatura necessária — é ser profética. O que temos aqui, de forma amplificada, é o perpétuo debate — literário ou cultural — entre os antigos e os modernos.
O passado é (ou foi) a Europa, e os Estados Unidos alicerçavam-se na idéia de romper com o passado, visto como um estorvo, um peso morto, e — em suas formas de deferência e superioridade, em seus critérios do que é superior e do que é melhor — fundamentalmente não democrático; ou “elitista”, o sinônimo corrente predominante. Aqueles que falam de uma América triunfal continuam a sugerir que a democracia americana implica repudiar a Europa e, sim, abraçar certo barbarismo liberador e salutar. Se hoje a Europa é vista pela maioria dos americanos como mais socialista do que elitista, isso ainda faz da Europa, pelos padrões americanos, um continente retrógrado, obstinadamente preso a padrões antigos: o Estado do bem-estar social. “Renovar” não é só um lema da cultura; também define uma máquina econômica que se move sempre para a frente e que abrange o mundo inteiro.
No entanto, se necessário, mesmo o “velho” pode ser rebatizado como “novo”.
Não é por coincidência que o tenaz secretário de Defesa americano tenha tentado abrir uma cunha dentro da Europa — traçando a distinção, de forma memorável, entre a Europa “velha” (ruim) e a Europa “nova” (boa). Como é que a Alemanha, a França e a Bélgica vieram a ser classificadas de Europa “velha”, ao passo que a Espanha, a Itália, a Polônia, a Ucrânia, a Holanda, a Hungria, a República Checa e a Bulgária se viram incluídas na Europa “nova”? Resposta: apoiar os Estados Unidos nas suas atuais ampliações do poder político e militar é, por definição, passar para a categoria mais desejável do “novo”. Quem estiver conosco é “novo”.
Todas as guerras modernas, mesmo quando seus objetivos são os tradicionais, como ampliação territorial ou obtenção de recursos escassos, são pintadas como confrontos de civilizações — guerras de culturas —, em que cada um dos lados declara ocupar a posição mais elevada, enquanto o outro é visto como bárbaro. O inimigo é sempre uma ameaça ao “nosso modo de vida”, um infiel, um profanador, um conspurcador, um corruptor de valores mais elevados e melhores. A guerra atual contra a ameaça muito real representada pelo fundamentalismo islâmico é um exemplo particularmente claro. O que vale a pena ressaltar é que uma versão mais branda dos mesmos termos de desqualificação se encontra subjacente no antagonismo entre a Europa e os Estados Unidos. Devemos também lembrar que, historicamente, a retórica antiamericana mais virulenta que já se ouviu na Europa — que consistia, em essência, na acusação de que os americanos são bárbaros — proveio não da chamada esquerda, mas sim da extrema direita. Tanto Hitler quanto Franco imprecavam repetidamente contra os Estados Unidos (e um judaísmo mundial), empenhados em corromper a civilização europeia com seus vis valores mercantis.
Obviamente, boa parte da opinião pública européia continua a admirar a energia americana, a versão americana do “moderno”. E sem dúvida sempre houve americanos companheiros de viagem dos ideais culturais europeus (um deles está aqui, diante dos senhores), que vêem na antiga arte da Europa a correção e uma liberação dos tenazes preconceitos mercantis da cultura americana. E sempre houve as contrapartes de tais americanos: europeus fascinados, subjugados, profundamente atraídos pelos Estados Unidos, justamente por causa da sua diferença em relação à Europa.
O que os americanos veem é quase o contrário do clichê eurófilo: veem-se defendendo a civilização. As hordas bárbaras não estão mais do outro lado dos portões. Estão do lado de dentro, em todas as cidades prósperas, tramando a devastação. Os países “fabricantes de chocolate” (França, Alemanha, Bélgica) terão de ficar de fora, enquanto um país de “vontade” — e com Deus do seu lado — trava a batalha contra o terrorismo (agora fundido com a barbárie). Segundo o secretário de Estado Colin Powell, é ridículo para a Europa “velha” aspirar a algum papel no governo ou na administração dos territórios conquistados pela coalizão do conquistador. A ela faltam tanto os meios militares quanto o gosto pela violência e o apoio de seus protegidos, todos eles povos demasiado pacíficos. Já os americanos têm tudo à mão. Os europeus não estão no espírito evangélico — ou belicoso.
De fato, às vezes tenho de me beliscar para ter certeza de que não estou sonhando: aquilo que muitos em meu próprio país agora condenam na Alemanha, a qual desencadeou tantos horrores pelo mundo ao longo de quase um século — o novo “problema alemão”, por assim dizer —, é que os alemães sentem repulsa pela guerra; que grande parte da opinião pública alemã é agora quase pacifista!
Mas será que os Estados Unidos e a Europa nunca foram parceiros, nunca foram amigos? Claro. Mas talvez seja verdade que os períodos de união — de sentimento comum — foram exceções, e não a regra. Um momento assim ocorreu entre a Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, quando os europeus sentiam-se profundamente gratos pela intervenção, pelo socorro e pelo apoio americanos. Os americanos sentem-se confortáveis ao retratarem a si mesmos como os salvadores da Europa. No entanto os Estados Unidos querem que os europeus sejam gratos para sempre, e não é isso o que os europeus sentem agora. Do ponto de vista da Europa “velha”, os Estados Unidos parecem inclinados a malbaratar a admiração — e a gratidão — sentida pela maioria dos europeus. A imensa solidariedade com os Estados Unidos no rescaldo do ataque do dia 11 de setembro de 2001 era genuína. (Posso dar testemunho do seu inequívoco ardor e sinceridade na Alemanha; eu estava em Berlim, na época.) Mas o que se seguiu foi um crescente estranhamento de ambas as partes.
Os cidadãos da nação mais rica e mais poderosa da história têm de saber que os Estados Unidos são amados, invejados... e que são objeto de ressentimento. Muitas pessoas que viajam para o exterior sabem que os americanos são vistos por muitos europeus como rudes, grosseiros, incultos, e não hesitam em responder a tais expectativas com um comportamento que sugere o ressentimento de ex-colonizados. E alguns europeus cultos que parecem ter o maior apreço em visitar ou em residir nos Estados Unidos atribuem a isso, de maneira condescendente, o ambiente liberador de uma colônia onde é possível desvencilhar-se das coerções e do fardo da alta cultura da “terra natal”. Lembro-me de ter ouvido de um cineasta alemão, na ocasião residente em San Francisco, que ele adorava viver nos Estados Unidos “porque aqui não existe nenhuma cultura”. Para não poucos europeus, inclusive, cumpre mencionar, D. H. Lawrence (“Lá a vida provém das raízes, rudes, porém vitais”, escreveu ele para um amigo em 1915, quando fazia planos de ir morar nos Estados Unidos), os Estados Unidos eram a grande evasão. E vice-versa: a Europa foi a grande evasão para gerações de americanos em busca de “cultura”. Claro, estou falando aqui só de minorias, minorias entre os privilegiados.
Portanto, os Estados Unidos agora veem a si mesmos como os defensores da civilização e os salvadores da Europa e não entendem por que os europeus não se dão conta disso; e os europeus veem os Estados Unidos como um temerário Estado guerreiro — imagem a que os americanos reagem vendo a Europa como inimiga dos Estados Unidos: ela apenas finge ser pacifista a fim de ajudar o enfraquecimento do poder dos Estados Unidos, assim reza a retórica que se ouve cada vez mais nos Estados Unidos. A França, em especial, é vista como se conspirasse para equiparar-se aos Estados Unidos, ou mesmo suplantá-los, na condução dos assuntos mundiais — “A operação América tem de dar errado” é o nome inventado por um colunista do New York Times para definir o ímpeto francês rumo à posição dominante —, em vez de compreender que uma derrota americana no Iraque (nas palavras do mesmo colunista) irá estimular “grupos muçulmanos radicais — de Bagdá até os bairros pobres muçulmanos de Paris” a insistirem na sua jihad contra a tolerância e a democracia.
É difícil para as pessoas não enxergarem o mundo em termos polarizados (“eles” e “nós”), e no passado esses termos reforçaram o teor isolacionista na política externa americana, assim como agora reforçam o teor imperialista. Os americanos se habituaram a pensar o mundo em termos de inimigos. Os inimigos estão em outra parte, assim como os combates estão quase sempre “lá longe”, com o fundamentalismo islâmico agora tomando o lugar do comunismo russo ou chinês no papel de uma ameaça implacável e sorrateira. E “terrorista” é uma palavra mais flexível do que “comunista”. Pode unificar um número maior de lutas e interesses muito diversos. Isso pode significar que a guerra é interminável — pois sempre vai existir algum terrorismo (como sempre vai haver pobreza e câncer); ou seja, sempre existirão conflitos assimétricos em que o lado mais fraco usa essa forma de violência, que em geral tem por alvo os civis. A retórica americana, que não coincide necessariamente com a opinião pública, daria apoio a essa perspectiva deplorável, pois a luta pelo que é correto nunca tem fim.
Está de acordo com a índole dos Estados Unidos, país profundamente conservador a um ponto que a Europa tem dificuldade em compreender, ter elaborado uma forma de pensamento conservador que celebra o novo em vez do velho. Mas isso também significa dizer que, da mesma forma que os Estados Unidos parecem extremamente conservadores — por exemplo, o extraordinário poder do consenso, a passividade e o conformismo da opinião pública (como Tocqueville observou em 1831) e da mídia —, são também radicais, e até revolucionários, de um modo que a Europa tem igualmente dificuldade em compreender.
Parte do enigma, sem dúvida, repousa na ausência de nexo entre a retórica oficial e a realidade vivida. Os americanos estão constantemente exaltando as “tradições”; as ladainhas em louvor dos valores da vida familiar ocupam o centro do discurso de qualquer político. No entanto a cultura dos Estados Unidos é extremamente corrosiva da vida familiar, a rigor corrosiva de todas as tradições, salvo aquelas redefinidas como “identidades” que se enquadram em critérios mais amplos de distinção, cooperação e abertura para a inovação.
Talvez a fonte mais importante do novo (e nem tão novo) radicalismo americano seja aquilo que se costumava encarar como a fonte dos valores conservadores: a saber, a religião. Muitos comentaristas observaram que talvez a maior diferença entre os Estados Unidos e a maioria dos países europeus (os velhos e também os novos, segundo a distinção americana corrente) seja o fato de que nos Estados Unidos a religião ainda desempenha um papel central na sociedade e na linguagem pública. Mas trata-se de religião no estilo americano: antes a idéia de religião do que a religião propriamente dita.
É verdade que, durante a campanha de Bush para a presidência em 2000, um jornalista teve a inspiração de pedir ao candidato que dissesse o nome do seu “filósofo favorito”, e a resposta, bem recebida — resposta que transformaria em objeto de chacota qualquer candidato para um alto cargo de qualquer partido de centro em qualquer país europeu — foi “Jesus Cristo”. Mas é claro que Bush não estava falando a sério nem foi interpretado como se estivesse dizendo que, se eleito, o seu governo iria sentir-se de fato obrigado a cumprir os preceitos e programas sociais pregados por Jesus.
Os Estados Unidos são uma sociedade genericamente religiosa. Ou seja, nos Estados Unidos não importa a qual religião você venha a aderir, contanto que tenha alguma. Ter uma religião governante, ou mesmo uma teocracia, que fosse apenas cristã (ou de uma denominação cristã específica) seria impossível. A religião nos Estados Unidos tem de ser uma questão de opção. Essa ideia de religião, moderna, relativamente sem conteúdo, construída segundo o modelo do direito de escolha do consumidor, é a base do conformismo americano, da sua crença na sua superioridade moral, e do seu moralismo (que os europeus muitas vezes confundem, de forma condescendente, com puritanismo). Quaisquer que sejam as crenças históricas que as diversas entidades religiosas americanas professam representar, todas pregam algo semelhante: a reforma do comportamento pessoal, o valor do sucesso, a cooperação comunitária, a tolerância com as opções dos outros (virtudes que impulsionam e abrem caminho para o funcionamento do capitalismo de consumo). O próprio fato de ser religioso assegura a respeitabilidade, promove a ordem e garante as intenções virtuosas da missão dos Estados Unidos de liderar o mundo.
O que é propagado — quer se chame democracia, liberdade ou civilização — é parte de uma obra em andamento, bem como a essência do progresso em si. Em nenhum outro lugar do mundo o sonho de progresso do Iluminismo encontrou um ambiente tão fértil como nos Estados Unidos. 
 
Então, será que estamos mesmo tão separados assim? É estranho que, exatamente na hora em que a Europa e os Estados Unidos são, culturalmente, mais semelhantes do que nunca, se verifica uma separação maior do que nunca.
Todavia, a despeito de todas as semelhanças na vida cotidiana dos cidadãos dos países ricos europeus e dos americanos, o abismo entre a experiência européia e a americana é autêntico, fundado em relevantes diferenças de história, de idéias sobre o papel da cultura, de memórias reais e imaginárias. O antagonismo — pois existe antagonismo — não será resolvido no futuro imediato, apesar de toda a boa vontade de muita gente de ambos os lados do Atlântico. Contudo, só podemos lamentar aqueles que desejam exacerbar tais diferenças quando temos tanto em comum.
O predomínio dos Estados Unidos é um fato. Mas os Estados Unidos, como o atual governo começa a perceber, não podem fazer tudo sozinhos. O futuro de nosso mundo — o mundo que compartilhamos — é sincretista, impuro. Não estamos isolados uns dos outros. Fundimo-nos cada vez mais uns aos outros.
No fim, o modelo para qualquer entendimento — conciliação — que podemos alcançar repousa em refletir mais a respeito da veneranda oposição “velho” e “novo”. A oposição entre “civilização” e “barbárie” é essencialmente arbitrária; pensar nela e falar a seu respeito de forma categórica é algo corruptor — por mais que ela possa refletir certas realidades inegáveis. Mas a oposição “velho” e “novo” é genuína, inerradicável, está no centro do que entendemos como a experiência em si mesma.
Velho” e “novo” são os pólos permanentes de todo sentimento e de todo sentido de orientação no mundo. Não podemos viver sem o velho, porque no velho se encontra investido todo o nosso passado, nossa sabedoria, nossas memórias, nossa tristeza, nosso sentido de realismo. Não podemos viver sem a fé no novo, porque no novo se encontra investida toda a nossa energia, nossa capacidade de otimismo, todo o nosso cego anseio biológico, nossa capacidade de esquecer — o dom de curar que torna possível toda reconciliação.
A vida interior tende a desconfiar do novo. Uma vida interior desenvolvida com vigor será especialmente refratária ao novo. Dizem-nos que temos de escolher — o velho ou o novo. Na verdade, temos de escolher ambos. O que é uma vida, senão uma série de transições entre o velho e o novo? Parece-me que deveríamos sempre nos empenhar em escapar dessas oposições inflexíveis.
Velho versus novo, natureza versus cultura — talvez seja inevitável que os grandes mitos da nossa vida cultural sejam representados como geografia, e não só como história. Porém eles são mitos, clichês, estereótipos, e nada mais; a realidade é muito mais complexa.
Boa parte da minha vida foi dedicada a tentar desmistificar maneiras de pensar que polarizam e opõem. Traduzido em política, isso significa favorecer o que é pluralista e secular. A exemplo de alguns americanos e europeus, gostaria muito mais de viver num mundo multilateral — um mundo que não fosse dominado por nenhum país (o meu inclusive). Num século que já promete ser mais um século de excessos, de horrores, eu poderia expressar o meu apoio a todo um arsenal de princípios melioristas — em especial, aquilo que Virginia Woolf chama de “virtude melancólica da tolerância”.
Em vez disso, permitam-me falar primeiro como escritora, como uma defensora da missão da literatura, pois aí repousa minha única autoridade.
A escritora que há em mim desconfia da boa cidadã, da “embaixatriz intelectual”, da ativista dos direitos humanos — papéis mencionados na apresentação deste prêmio, por mais que eu me empenhe neles. A escritora é mais cética, tem mais dúvidas a respeito de si mesma, do que a pessoa que tenta fazer (e apoiar) o que é certo.
Uma das tarefas da literatura é questionar e construir contra-afirmações às crenças dominantes. E mesmo quando a arte não é de oposição, as artes gravitam rumo à contrariedade. Literatura é diálogo; receptividade. A literatura pode ser definida como a história da receptividade humana em relação ao que está vivo e ao que está moribundo, à medida que as culturas se desenvolvem e interagem umas com as outras.
Os escritores podem fazer alguma coisa para combater esses clichês sobre a nossa separação, a nossa diferença — pois escritores são criadores, não só transmissores, de mitos. A literatura oferece não só mitos, mas contramitos, assim como a vida oferece contra-experiências — experiências que perturbam aquilo que pensávamos pensar, sentir ou acreditar.
Um escritor, quero crer, é alguém que presta atenção no mundo. Isso significa que ele tenta compreender, assimilar, incorporar qualquer maldade que os seres humanos são capazes de praticar, e não se corromper — tornar-se cínico, superficial — por conta de tal compreensão.

A literatura pode nos dizer como o mundo parece ser.
A literatura pode fornecer critérios e transmitir um conhecimento profundo, encarnado na língua, na narrativa.
A literatura pode treinar, exercitar, a nossa capacidade de chorar por aqueles que não são nós, nem nossos.
Quem seríamos se não pudéssemos sentir solidariedade com aqueles que não são nós, nem nossos? Quem seríamos se não pudéssemos esquecer a nós mesmos, pelo menos uma parte do tempo? Quem seríamos se não pudéssemos aprender? Perdoar? Tornar-nos-íamos outra pessoa, que não nós mesmos? 
 
No momento em que recebo este prêmio glorioso, este glorioso prêmio alemão, permitam-me contar algo da minha própria trajetória.
Sou da terceira geração americana de descendentes de judeus poloneses e lituanos e nasci duas semanas antes de Hitler chegar ao poder. Cresci em regiões provincianas dos Estados Unidos (Arizona e Califórnia), longe da Alemanha e, contudo, minha infância inteira foi assombrada pela Alemanha, pela monstruosidade da Alemanha, pelos livros alemães e pela música alemã, que eu adorava, e que estabeleceu o meu padrão do que é elevado e profundo.
Ainda antes de Bach, Beethoven, Mozart, Schubert e Brahms, houve alguns livros alemães. Estou pensando num professor numa escola primária numa pequena cidade no sul do Arizona, o senhor Starkie, que espantava os seus alunos contando que havia lutado no Exército de Pershing, no México, contra Pancho Villa: esse veterano de uma antiga aventura imperialista americana, ao que parece, sentiu-se tocado, em tradução, pelo idealismo da literatura alemã e, ao se dar conta da minha fome especial de livros, emprestou-me seus exemplares de Os sofrimentos do jovem Werther e Immensee.
Pouco depois, na minha orgia infantil de leitura, o acaso levou-me a outros livros alemães, inclusive Na colônia penal, de Kafka, onde descobri o pavor e a injustiça. Poucos anos mais tarde, quando eu era aluna do ensino médio, em Los Angeles, descobri tudo da Europa num romance alemão. Nenhum livro foi mais importante na minha vida do que A montanha mágica — cujo tema é, exatamente, o choque dos ideais que estão no cerne da civilização europeia. E assim por diante, no decorrer de uma vida longa, impregnada da alta cultura alemã. De fato, depois dos livros e da música, que, em função do deserto cultural em que eu vivia, foram experiências quase clandestinas, vieram as experiências reais. Pois sou também uma tardia beneficiária da diáspora cultural alemã e tive a felicidade de conhecer bem alguns dos refugiados de Hitler incomparavelmente talentosos, os escritores, artistas, músicos e professores que os Estados Unidos receberam na década de 1930 e que tanto enriqueceram o país, sobretudo as universidades. Permitam-me que cite o nome de dois deles, que tive o privilégio de ter como amigos entre o fim da adolescência e os meus vinte e poucos anos: Hans Gerth e Herbert Marcuse; aqueles com quem tive aula na Universidade de Chicago e em Harvard: Christian Mackauer, Leo Strauss, Paul Tillich, Peter Heinrich von Blanckenhagen, e em seminários particulares, Aron Gurwitsch e Nahum Glatzer; e Hannah Arendt, a quem conheci depois que me mudei para Nova York, por volta dos meus vinte e cinco anos — são muitos os modelos de seriedade, cuja memória eu gostaria de evocar aqui.
Mas nunca esquecerei que o meu envolvimento com a cultura alemã, com a seriedade alemã, começou com o obscuro e excêntrico senhor Starkie (acho que eu nunca soube o seu prenome), meu professor quando eu tinha dez anos de idade e que nunca mais voltei a ver.
E isso me leva a uma história, com a qual concluo — de modo apropriado, ao que parece, pois não sou prioritariamente nem embaixatriz cultural nem crítica ferrenha do meu próprio governo (tarefa que desempenho como uma boa cidadã americana). Sou contadora de histórias.
Assim, lá estava eu aos dez anos de idade, e encontrava algum alívio das enfadonhas tarefas de ser criança queimando as pestanas sobre os surrados volumes de Goethe e Storm que pertenciam ao senhor Starkie. Ao mesmo tempo, estou me referindo ao ano de 1943, quando eu tinha consciência de que havia um campo de prisioneiros com milhares de soldados alemães — soldados nazistas, como eu obviamente pensava neles — na região norte do estado, eu sabia que era judia (ainda que só formalmente, pois meus familiares eram totalmente seculares e assimilados já fazia duas gerações; mas, formalmente, eu sabia, isso já era o suficiente para os nazistas), e eu era perseguida por um pesadelo recorrente em que soldados nazistas fugiam da prisão, conseguiam chegar até a cidade onde eu morava, com minha mãe e minha irmã, e estavam à beira de me matar.
Vamos dar um salto para muitos anos depois disso, na década de 1970, quando meus livros começaram a ser publicados pela editora Hanser Verlag e conheci o ilustre Fritz Arnold (ele havia ingressado na empresa em 1965), que foi o meu editor na Hanser até sua morte, em 1999.
Numa das primeiras ocasiões em que estivemos juntos, Fritz disse que queria me contar — supondo, presumo, que isso fosse um pré-requisito para qualquer amizade que pudesse surgir entre nós — o que ele tinha feito durante a guerra. Garanti-lhe que não me devia nenhuma explicação desse tipo; mas, é claro, fiquei comovida por ele ter levantado o assunto. Devo acrescentar que Fritz Arnold não foi o único alemão ou alemã da sua geração (ele nasceu em 1916) que, pouco depois de me conhecer, insistiram em contar o que tinham feito durante a época dos nazistas. E nem todas as histórias eram inocentes como a que ouvi de Fritz.
De todo modo, Fritz me contou que era estudante universitário de literatura e história da arte, primeiro em Munique, depois em Colônia, quando, no início da guerra, foi convocado para a Wehrmacht, com o posto de cabo. Sua família, é claro, nada tinha de pró-nazista — seu pai era Karl Arnold, o célebre cartunista político de Simplicissimus —, mas a emigração parecia algo fora de questão e ele aceitou, com temor, a convocação para o serviço militar, com a esperança de não matar nem ser morto.
Fritz foi um dos que tiveram sorte. Sorte de ter ficado primeiro em Roma (onde rejeitou o convite do seu superior para ser promovido a tenente), depois em Túnis; teve muita sorte ao ficar por trás das linhas e nunca ter disparado uma arma; e por fim a sorte, se essa é a palavra correta, de ter sido feito prisioneiro pelos americanos em 1943, levado de navio para o outro lado do Atlântico junto com outros soldados alemães capturados, até Norfolk, na Virgínia, e depois transportado de trem para o outro lado do continente, onde passou o resto da guerra num campo de prisioneiros... no norte do Arizona.
Assim tive o prazer de contar a ele, suspirando de espanto, pois eu já começara a sentir um grande carinho por aquele homem — isso foi o início de uma grande amizade, bem como de uma profunda relação profissional —, que enquanto ele era prisioneiro de guerra no norte do Arizona, eu estava no sul do estado, aterrorizada com os soldados nazistas que estavam lá, aqui, e dos quais não havia como fugir.
E então Fritz me contou que o que lhe permitiu resistir durante os quase três anos no campo de prisioneiros no Arizona foi a autorização de ler livros: ele passou aqueles anos lendo e relendo os clássicos americanos e ingleses. E eu lhe contei que o que me salvou quando eu era estudante no Arizona, à espera de crescer, à espera da hora de fugir para uma realidade mais ampla, foi ler livros, livros traduzidos e também escritos originalmente em inglês.
Ter acesso à literatura, à literatura do mundo, era escapar da prisão da futilidade nacional, da vulgaridade, do provincianismo compulsório, do ensino vazio, dos destinos imperfeitos e da má sorte. A literatura era o passaporte para entrar numa vida mais ampla; ou seja, a região da liberdade.
Literatura era liberdade. Sobretudo numa época em que os valores da leitura e da introspecção são tão tenazmente contestados, a literatura é liberdade.
 
*Igreja de São Paulo. Em 1848, foi sede do primeiro Parlamento alemão eleito democraticamente. (N. E.)

Susan Sontag, em Ao Mesmo Tempo – Ensaios e Discursos

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