76.
Penso às vezes com um agrado (em
bissecção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa
consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das
suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência
precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria
alma. Por enquanto vamos em princípio nesta arte difícil – arte
ainda, química de sensações no seu estado alquímico por ora. Esse
cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua
própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão
para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em
construir um instrumento de precisão, para uso auto-analítico, com
aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes
realmente aços e bronzes, mas do espírito. E talvez mesmo assim que
ele deva ser construído.
Será talvez preciso arranjar a ideia
de um instrumento de precisão, materialmente vendo essa ideia, para
poder proceder a uma rigorosa análise íntima. E naturalmente será
necessário reduzir também o espírito a uma espécie de matéria
real com uma espécie de espaço em que existe. Depende tudo isso do
aguçamento extremo das nossas sensações interiores, que, levadas
até onde podem ser, sem dúvida revelarão, ou criarão, em nós um
espaço real como o espaço que há onde as coisas da matéria estão,
e que, aliás, é irreal como coisa.
Não sei mesmo se este espaço
interior não será apenas uma nova dimensão do outro. Talvez a
investigação científica do futuro venha a descobrir que tudo são
dimensões do mesmo espaço, nem material nem espiritual por isso.
Numa dimensão viveremos corpo; na outra viveremos alma. E há talvez
outras dimensões onde vivemos outras coisas igualmente reais de nós.
Apraz-me às vezes deixar-me possuir pela meditação inútil do
ponto até onde esta investigação pode levar.
Talvez se descubra que aquilo a que
chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não
a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de
existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser. Isto
não me parece impossível. Os sonhos também serão talvez ou ainda
outra dimensão em que vivemos, ou um cruzamento de duas dimensões;
como um corpo vive na altura, na largura e no comprimento, os nossos
sonhos, quem sabe, viverão no ideal, no eu e no espaço. No espaço
pela sua representação visível; no ideal pela sua apresentação
de outro género que a da matéria; no eu pela sua íntima dimensão
de nossos. O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvez uma
dimensão divina. Tudo isto é complexo e ao seu tempo, sem dúvida,
será determinado. Os sonhadores atuais são talvez os grandes
precursores da ciência final do futuro. Não creio, é claro, numa
ciência final do futuro. Mas isso nada tem para o caso.
Faço às vezes metafísicas destas,
com a atenção escrupulosa e respeitosa de quem trabalha deveras e
faz ciência. Já disse que chega a ser possível que a esteja
realmente. O essencial é eu não me orgulhar muito com isto, dado
que o orgulho é prejudicial à exata imparcialidade da precisão
científica.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
Nenhum comentário:
Postar um comentário