sábado, 27 de dezembro de 2025

Contemplação no banco



I
 
O coração pulverizado range
sob o peso nervoso ou retardado ou tímido
que não deixa marca na alameda, mas deixa
essa estampa vaga no ar, e uma angústia em mim,
espiralante.
 
Tantos pisam este chão que ele talvez
um dia se humanize. E malaxado,
embebido da fluida substância de nossos segredos,
quem sabe a flor que aí se elabora, calcária, sanguínea?
 
Ah, não viver para contemplá-la! Contudo,
não é longo mentar uma flor, e permitido
correr por cima do estreito rio presente,
construir de bruma nosso arco-íris.
 
Nossos donos temporais ainda não devassaram
o claro estoque de manhãs
que cada um traz no sangue, no vento.
 
Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
e olho para os pés dos homens, e cismo.
 
Escultura de ar, minhas mãos
te modelam nua e abstrata
para o homem que não serei.
 
Ele talvez compreenda com todo o corpo,
para além da região minúscula do espírito,
a razão de ser, o ímpeto, a confusa
distribuição, em mim, de seda e péssimo.

II
 
Nalgum lugar faz-se esse homem…
Contra a vontade dos pais ele nasce,
contra a astúcia da medicina ele cresce,
e ama, contra a amargura da política.
 
Não lhe convém o débil nome de filho,
pois só a nós mesmos podemos gerar,
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.
 
Irmão lhe chamaria, mas irmão
por quê, se a vida nova
se nutre de outros sais, que não sabemos?
 
Ele é seu próprio irmão, no dia vasto,
na vasta integração das formas puras,
sublime arrolamento de contrários
enlaçados por fim.
 
Meu retrato futuro, como te amo,
e mineralmente te pressinto, e sinto
quanto estás longe de nosso vão desenho
e de nossas roucas onomatopeias…

III

Vejo-te nas ervas pisadas.
O jornal, que aí pousa, mente.
 
Descubro-te ausente nas esquinas
mais povoadas, e vejo-te incorpóreo,
contudo nítido, sobre o mar oceano.
 
Chamar-te visão seria
malconhecer as visões
de que é cheio o mundo
e vazio.
 
Quase posso tocar-te, como às coisas diluculares
que se moldam em nós, e a guarda não captura,
e vingam.
 
Dissolvendo a cortina de palavras,
tua forma abrange a terra e se desata
à maneira do frio, da chuva, do calor e das lágrimas.
 
Triste é não ter um verso maior que os literários,
é não compor um verso novo, desorbitado,
para envolver tua efígie lunar, ó quimera
que sobes do chão batido e da relva pobre.

Carlos Drummond de Andrade, em Claro Enigma

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