Tendo sido, a vida inteira, um
escritor marginal, conheci alguns estranhos editores, mas os mais
estranhos de todos foram H. R. Mulloch e sua esposa, Honeysuckle.
Mulloch, ex-presidiário e ex-ladrão de diamantes, era editor da
revista Falecimento. Comecei a mandar-lhe poesia, e seguiu-se
uma correspondência. Ele dizia que minha poesia o arruinara para a
de todos os outros; e eu lhe respondi que também a mim ela arruinara
para a de todos os outros. H. R. começou a falar da possibilidade de
produzir um livro de meus poemas e eu disse tudo bem, ótimo, vá em
frente. Ele escreveu: não posso pagar os direitos autorais, somos
pobres como ratos de igreja. Eu respondi: tudo bem, ótimo, esqueça
os direitos, eu sou tão pobre quanto o peito murcho de uma rata de
igreja. Ele respondeu: espera aí, a maioria dos escritores, bem, eu
os conheci, e são completos babacas e seres humanos horríveis. Eu
escrevi: tem razão, eu sou um completo babaca e um ser humano
horrível. Tudo bem, ele respondeu, eu e Honeysuckle vamos a Los
Angeles dar uma conferida em você.
O telefone tocou uma semana e meia
depois. Eles estavam na cidade, acabavam de chegar de Nova Orleans,
hospedados num hotel da Rua Três cheio de prostitutas, bebuns,
batedores de carteira, lavadores de pratos, assaltantes,
estranguladores e estupradores. Mulloch adorava a vida inferior, e
acho que até amava a pobreza. Por suas cartas, fiquei com a ideia de
que H. R. acreditava que a pobreza gerava a pureza. Claro, é o que
os ricos sempre quiseram que a gente acreditasse, mas isso já é
outra história.
Entrei no carro com Marie e seguimos,
primeiro parando para as embalagens de seis cervejas e uma garrafinha
de uísque barato. Um homenzinho grisalho de pouco mais de um metro e
sessenta estava parado do lado de fora. Vestia azul de operário, mas
com um lenço (branco) no pescoço. Na cabeça, usava um sombrero
branco de copa muito alta. Marie e eu nos aproximamos. Ele tirava
baforadas de um cigarro e sorria.
– Chinaski?
– É – respondi – , e esta aqui
é Marie, minha mulher.
– Nenhum homem – ele disse –
pode jamais chamar uma mulher de sua. A gente nunca é dono delas, só
tomamos de empréstimo por algum tempo.
– É – eu disse –, acho que
assim é melhor.
Seguimos H. R. escada acima e por um
corredor pintado de azul e vermelho que cheirava a assassinato.
– Foi o único hotel que encontramos
na cidade que aceitava os cachorros, um papagaio e nós dois.
– Parece um ótimo lugar – eu
disse.
Ele abriu a porta e entramos. Dois
cachorros corriam de um lado para outro, e Honeysuckle estava parada
no centro da sala com um papagaio no ombro.
– Thomas Wolfe – disse o papagaio
– é o maior escritor vivo do mundo.
– Wolfe já morreu – eu disse. –
Seu papagaio está errado.
– É um papagaio velho – disse H.
R. – Nós temos ele faz muito tempo.
– Há quanto tempo está com
Honeysuckle?
– Trinta anos.
– E apenas tomou ela emprestada por
algum tempo?
– É o que parece.
Os cachorros corriam em volta e
Honeysuckle ficou parada no centro da sala com o papagaio no ombro.
Era morena, italiana ou grega, muito magra, com bolsas embaixo dos
olhos; tinha um ar trágico, bondoso e perigoso, sobretudo trágico.
Pus o uísque e as cervejas na mesa e todo mundo se adiantou para
eles. Apareceram copos empoeirados, juntamente com vários cinzeiros.
Através da parede à esquerda trovejou de repente uma voz masculina,
“Sua puta fodida, eu quero que você coma minha merda!”
Nós nos sentamos e eu servi o uísque
pra todos. H. R. me passou um charuto. Eu tirei a embalagem, mordi a
ponta fora e acendi.
– Que acha da literatura moderna? –
perguntou H. R.
– Na verdade não gosto muito.
H. R. entrecerrou os olhos e me deu um
sorrisinho.
– Ah, era o que eu pensava!
– Escuta – eu disse –, por que
não tira esse sombrero pra eu ver com quem estou tratando? Você
pode ser um ladrão de cavalo.
– Não – ele disse, arrancando o
sombrero com um gesto dramático –, mas fui um dos melhores ladrões
de diamantes do estado de Ohio.
– É mesmo?
– É.
As garotas bebiam.
– Eu simplesmente adoro meus
cachorros – disse Honeysuckle. – Vocês têm cachorros? – ela
me perguntou.
– Não sei se gosto deles ou não.
– Ele ama a si mesmo – disse
Marie.
– Marie tem uma mente muito
penetrante – eu disse.
– Gosto do modo como você escreve –
disse H. R. – Sabe dizer muita coisa sem muito babado.
– O gênio talento seja a capacidade
de dizer coisas profundas de maneira simples.
– Que é isso? – perguntou H. R.
Eu repeti a declaração e servi mais
uísque pro grupo.
– Preciso anotar isso – disse H.
R.
Sacou uma caneta do bolso e anotou-a
na borda de uma das sacolas de papel pardo em cima da mesa.
O papagaio saltou do ombro de
Honeysuckle, atravessou a mesa e subiu em meu ombro esquerdo.
– Legal – disse Honeysuckle.
– James Thurber – disse o papagaio
– é o maior escritor vivo do mundo.
– Sacana burro – eu disse ao
pássaro.
Senti uma dor aguda na orelha
esquerda. O bicho quase a arrancara. Somos todos criaturas muito
sensíveis. H. R. destampou mais cervejas. Continuamos bebendo.
A tarde tornou-se noite, e a noite
tornou-se meia-noite. Acordei no escuro. Estava dormindo no tapete no
centro da sala. H. R. e Honeysuckle dormiam na cama. Marie dormia no
sofá. Todos os três roncavam, sobretudo Marie. Eu me levantei e me
sentei à mesa. Ainda restava um pouco de uísque. Servi-o e bebi uma
cerveja quente. Fiquei ali sentado e bebi mais cerveja quente. O
papagaio empoleirava-se nas costas de uma cadeira defronte de mim. De
repente, ele saltou e atravessou a mesa por entre os cinzeiros e
garrafas vazias e subiu em meu ombro.
– Não diga aquilo – eu lhe disse
–, me irrita muito quando você diz aquilo.
– Puta da porra – disse o
papagaio.
Eu o peguei pelos pés e coloquei-o de
volta na cadeira. Depois me deitei no tapete e fui dormir.
Pela manhã, H. R. Mulloch fez um
anúncio.
– Decidi editar um livro com seus
poemas. É melhor a gente ir pra casa e começar a trabalhar.
– Quer dizer que compreendeu que eu
não sou um ser humano horrível?
– Não – disse H. R. –, não
compreendi nada disso, mas decidi ignorar minha opinião e editar
você de qualquer jeito.
– Você foi mesmo o melhor ladrão
de diamantes do estado de Ohio?
– Ah, sim.
– Sei que cumpriu pena. Como pegaram
você?
– Eu fui tão idiota que não quero
falar disso.
Eu desci e peguei mais duas embalagens
de seis cervejas, voltei e com Marie ajudei H. R. e Honeysuckle a
fazerem as malas. Havia caixas especiais para o transporte dos
cachorros e do papagaio. Baixamos tudo pela escada para dentro de meu
carro, depois nos sentamos e matamos as cervejas. Éramos todos
profissionais: ninguém era idiota o bastante para sugerir café da
manhã.
– Agora vocês vão nos visitar –
disse H. R. – Vamos preparar o livro juntos. Você é um filho da
puta, mas a gente pode falar com você. Os outros poetas estão
sempre exibindo as plumagens e fazendo um número burro de babaca.
– Você é legal – disse
Honeysuckle. – Os cachorros gostam de você.
– E o papagaio – disse H. R.
As garotas ficaram no carro e eu
voltei com H. R. para ele devolver a chave. Uma velha de quimono
verde, o cabelo pintado de vermelho vivo, abriu a porta.
– Essa é Mama Stafford – me disse
H. R. – Mama Stafford, esse é o maior poeta do mundo.
– É mesmo? – perguntou Mama
Stafford.
– O maior poeta vivo do mundo – eu
disse.
– Por que vocês não entram pra
tomar um trago? Parece que estão precisados.
Entramos e cada um engoliu um copo de
vinho branco quente. Despedimo-nos e voltamos ao carro...
Na estação ferroviária, H. R.
comprou as passagens e embarcou os cachorros e o papagaio no balcão
de bagagem. Depois voltou e sentou-se conosco.
– Odeio voar – disse. – Tenho
pavor de voar.
Fui pegar uma garrafinha de uísque e
a passamos entre nós enquanto esperávamos. Depois começaram a pôr
a carga no trem. Ficamos zanzando na plataforma e de repente
Honeysuckle saltou em cima de mim e me deu um longo beijo. No fim,
enfiou e retirou rapidamente a língua em minha boca. Eu fiquei
parado e acendi um charuto, enquanto Marie beijava H. R. Depois H. R.
e Honeysuckle embarcaram no trem.
– É um cara legal – disse Marie.
– Querida – eu disse –, acho que
você paquerou ele.
– Está com ciúmes?
– Sempre estou.
– Veja, estão na janela, sorrindo
pra nós.
– É embaraçoso. Eu queria que a
porra do trem fosse embora.
Finalmente o trem se pôs em
movimento. Acenamos, é claro, e eles acenaram de volta. H. R. tinha
um sorriso satisfeito e feliz. Honeysuckle parecia chorar. Parecia
muito trágica. Depois não pudemos mais vê-los. Acabou-se. Eu ia
ser editado. Poemas Seletos. Demos meia-volta e atravessamos a
estação ferroviária.
Charles Bukowski, em Numa Fria

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