Vim; e não nego que, ao avistar a
cidade natal, tive uma sensação nova. Não era efeito da minha
pátria política, era-o do lugar da infância, a rua, a torre, o
chafariz da esquina, a mulher de mantilha, o preto do ganho, as
coisas e cenas da meninice, buriladas na memória. Nada menos que uma
renascença. O espírito, como um pássaro, não se lhe deu da
corrente dos anos, arrepiou o voo na direção da fonte original, e
foi beber da água fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da
vida.
Reparando bem, há aí um lugar-comum.
Outro lugar-comum, tristemente comum, foi a consternação da
família. Meu pai abraçou-me com lágrimas. – Tua mãe não pode
viver, disse-me ele. Com efeito, não era já o reumatismo que a
matava, era um cancro no estômago. A infeliz padecia de um modo cru,
porque o cancro é indiferente às virtudes do sujeito; quando rói,
rói; roer é o seu ofício. Minha irmã Sabina, já então casada
com o Cotrim, andava a cair de fadiga. Pobre moça! dormia três
horas por noite, nada mais. O próprio tio João estava abatido e
triste. Dona Eusébia e algumas outras senhoras lá estavam também,
não menos tristes e não menos dedicadas.
– Meu filho!
A dor suspendeu por um pouco as
tenazes; um sorriso alumiou o rosto da enferma, sobre o qual a morte
batia a asa eterna. Era menos um rosto do que uma caveira: a beleza
passara, como um dia brilhante; restavam os ossos, que não emagrecem
nunca. Mal poderia conhecê-la; havia oito ou nove anos que nos não
víamos. Ajoelhado, ao pé da cama, com as mãos dela entre as
minhas, fiquei mudo e quieto, sem ousar falar, porque cada palavra
seria um soluço, e nós temíamos avisá-la do fim. Vão temor! Ela
sabia que estava prestes a acabar; disse-mo; verificamo-lo na
seguinte manhã.
Longa foi a agonia, longa e cruel, de
uma crueldade minuciosa, fria, repisada, que me encheu de dor e
estupefação.
Era a primeira vez que eu via morrer
alguém. Conhecia a morte de oitiva; quando muito tinha-a visto já
petrificada no rosto de algum cadáver, que acompanhei ao cemitério,
ou trazia-lhe a ideia embrulhada nas amplificações de retórica dos
professores de coisas antigas, – a morte aleivosa de César, a
austera de Sócrates, a orgulhosa de Catão. Mas esse duelo do ser e
do não-ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem
aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa
foi a primeira vez que a pude encarar. Não chorei; lembra-me que não
chorei durante o espetáculo: tinha os olhos estúpidos, a garganta
presa, a consciência boquiaberta.
Quê? uma criatura tão dócil, tão
meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de
desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse
assim, trateada, mordida pelo dente tenaz de uma doença sem
misericórdia?
Confesso que tudo aquilo me pareceu
obscuro, incongruente, insano...
Triste capítulo; passemos a outro
mais alegre.
Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas

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