Eu não vim aqui por comida. Minha
barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais.
— CANÇÃO RITUALÍSTICA MANDINGA
Meus primeiros dias na Juilliard são
um borrão. Em parte porque estava tentando encaixar o começo de uma
fase importantíssima da minha vida na rotina que eu levava, e em
parte também por causa do apartamento. Na verdade, não entendia bem
os imóveis em Nova York. Para mim, todos os apartamentos se pareciam
com o de George Jefferson, de Tudo em família.
Antes de aceitar minha vaga na
Juilliard, precisei organizar minhas finanças. Tinha o dinheiro da
Fundação Rhode Island e economias do meu trabalho diurno como atriz
no Providence Performing Arts Center. Meu orçamento estava apertado.
A solução ideal parecia ser sublocar
um apartamento barato em Nova York, em um prédio que tivesse o valor
do aluguel estabilizado por lei. Susan Lawson, a dona do apartamento
que subloquei, era uma diretora vanguardista que mais tarde chefiou o
curso de teatro na Universidade Columbia. Ela me abordou depois
de uma das peças em que estive na Trinity Rep. Contei que tinha sido
aceita na Juilliard. Ela ficou impressionada e disse:
— Tenho um apartamento para você.
— Ai, meu Deus. Olha como Deus age.
Ai, meu Deus.
— É verdade. Tenho um apartamento
para você. É o meu.
Susan é uma mulher elegante. Ela
tinha acabado de se tornar diretora artística na Trinity Rep,
assumindo o lugar de Adrian Hall. Ela estaria em Providence. Eu
estaria em Nova York. Era perfeito!
— Ai, meu Deus. Preciso preencher um
formulário de inscrição?
— Não, se você quiser é seu.
— Quanto é o aluguel?
— Duzentos e noventa dólares por
mês.
— Ai, meu Deus. Eu aceito. Aceito,
sim. Sem problemas.
Ela provavelmente me perguntou: “Você
não quer ver o apartamento primeiro?”, mas eu não tinha tempo
para isso e só quis saber:
— Como é o apartamento?
— Eu adoro. Moro lá há anos. É um
apartamento estilo studio.
Ela o fez parecer melhor do que
realmente era.
Pensei: É o apartamento dela, e
ela adora. Uma diretora do alto escalão. Apartamento dela. No
Village.
— Sim, vou querer alugar.
Quando cheguei ao prédio na First
Avenue, entre a Second e a Third Streets, o que ficou se repetindo na
minha mente foram as palavras dela: Ah, eu adoro o apartamento.
Subir as escadas me fez sentir em um daqueles comerciais do
Booking.com em que alguém está há horas na estrada, perdeu os
sapatos, os filhos vomitaram, está cansado... Então a pessoa abre a
porta do quarto do hotel e se depara com uma suíte gigantesca e
suntuosa com vista para o mar. Era o que eu esperava do apartamento
de Susan, o cenário para os meus anos na Juilliard. Minha
expectativa era ficar deslumbrada! Minha nossa, quando abri aquela
maldita porta, não foi isso que aconteceu. Foi horrível.
O lugar tinha uns quarenta metros
quadrados. Havia um fogão pequeno no lado direito e prateleiras de
madeira improvisadas. Abaixo delas havia uma pia branca grande e
enferrujada. Era uma daquelas pias que geralmente se vê em porões.
Ao lado da pia ficava a banheira. Isso mesmo. Bem no meio do
apartamento tinha uma banheira com manchas de ferrugem. Pensei: Cadê
a privada? Eu a encontrei no que me pareceu ser um closet
minúsculo. Era uma daquelas privadas com cordinha para dar descarga.
O lugar estava infestado de ratos. Infestado. Eles saíam de buracos
no assoalho. À noite, dava para ouvi-los subindo e comendo todos os
mantimentos nas prateleiras. Por conta da minha infância, não é
surpresa que aquilo tenha me enlouquecido. Eu matava mais de dez
ratos por dia. Podia ouvir as ratoeiras estalando. Em seguida, jogava
a ratoeira, com rato e tudo, no lixo. De jeito nenhum eu tocaria
neles!
Liguei para ela em um fim de semana:
— Susan! Tem ratos no seu
apartamento!— Não me lembro de a gente ter visto ratos, Viola —
disse ela.— Susan, tem ratos aqui. Estou matando uma dúzia por
dia. Você precisa me ajudar. Ligue para o senhorio.
Não posso voltar, era o que eu
estava pensando.
Nada.
Avisei a Susan:
— Só vou ficar até o fim do ano.
Ela poderia ter me dado um desconto no aluguel. Como mencionei, o
valor do aluguel era controlado por lei. Ela morava ali havia
décadas. Anos depois, talvez por volta dos anos 1990, eu estava
trabalhando com alguém em São Francisco e contei o caso desse
apartamento. No meio da conversa, essa pessoa me disse:
— Eu me lembro de Susan Lawson. Ouvi
dizer que ela tinha o pior apartamento que alguém já viu na vida.
Todos os atores de Nova York sabiam disso.
Em defesa de Susan, a vida em Nova
York era assim mesmo. Uma selva de pedra repleta de pessoas
apressadas, esforçadas e cheias de sonhos, que trabalhavam duro para
se dar bem na vida. Todas aglomeradas em prédios altos, cujos
proprietários tinham como único propósito ver quantas pessoas
conseguiam enfiar ali. Eu amava a austeridade da cidade. Amo como
Nova York é viva. Só não gosto das moradias. Precisava de um lugar
que mantivesse essa austeridade da cidade do lado de fora.
Na época, a área não era muito
melhor que o apartamento. O trem da linha F quase nunca funcionava.
Quando saía dele, via as mesmas pessoas em situação de rua. Uma
mulher que sempre surgia com um novo hematoma. Mesmo todo dia
participando de um pedacinho ínfimo de sua vida, dava para perceber
que ela estava sendo espancada. Por vezes, chegando em casa, eu
encontrava sangue na porta da frente do prédio, isolada pela fita
zebrada da polícia. Isso acontecia por causa do CBGB, um antigo bar
de motociclistas — que na época tinha perdido o glamour — no
qual algumas das maiores estrelas do rock começaram a carreira:
Patti Smith, The B-52s, Blondie, Joan Jett & the Blackhearts,
Talking Heads. À noite, o lugar entrava em ebulição e esse tumulto
culminava em muito vômito e sangue na entrada do meu prédio.
O apartamento nunca ficava frio.
Conservava o calor. Sempre tinha água quente. A descarga sempre
funcionava. Essas eram as únicas coisas boas de se morar ali. Eu
ficava na faculdade o dia inteiro e só voltava à noite, mas passava
todos os fins de semana em casa. E comia o dia todo. Comia, comia,
comia. Nunca fui de beber, mas algumas vezes bebi uma cervejinha
junto com a refeição. Ganhei quase nove quilos comendo baguete com
salame, queijo, tomates e mostarda; uma panela de macarrão todos os
dias; e quase meio litro de sorvete Häagen-Dazs de passas ao rum.
Comecei o curso na Juilliard com 18
outros colegas de classe. No fim do primeiro ano, éramos 14. Um foi
expulso. Um foi cortado. Os outros dois desistiram; ambos eram alunos
negros. Existem quatro grupos diferentes na Xilindrólliard,
como chamávamos. Cada grupo recebe um número. Então, no primeiro
ano o nosso era o 22. No segundo ano, 21; no terceiro, 20; e no
quarto, 19.
No instante em que passei por aquelas
portas na esquina da Sixty-Fifth com a Broadway, ficou evidente por
que tantos eram expulsos ou iam embora desesperados. Era difícil. O
que levava alguém a ser aceito era logo deixado em segundo plano.
Eles não tinham interesse no que fazíamos bem, e sim no que
fazíamos mal. Se você fosse uma mocinha sonhadora e ingênua,
pediam que interpretasse o papel de uma matriarca pé no chão. Caso
se mostrasse forte e emotivo, queriam ver seu lado mais leve, mesmo
que para isso tivessem que pressioná-lo ao extremo.
John Styk, Robert Williams, Marian
Seldes, Moni Yakim, Jude Leibowitz — esses eram nossos
professores no primeiro ano. Começávamos cedo toda manhã, mais ou
menos às oito, e raramente terminávamos antes de altas horas da
noite. Tínhamos aulas de oratória, voz, Técnica de Alexander,
movimento e estudo de cena.
A Técnica de Alexander ensina o ator
a usar o corpo sem estresse nem tensão. Alunos do primeiro ano não
atuavam com alunos do segundo, terceiro ou quarto, porque cada ano
tinha seus objetivos específicos e era um grupo separado. O primeiro
ano tinha como foco a descoberta. Encenamos uma peça de Shakespeare
chamada Péricles.
Eles queriam ver o que tínhamos a
oferecer. Foi dirigida pela grande atriz, hoje já falecida, Marian
Seldes. Podíamos fazer o que quiséssemos. Para o projeto seguinte,
recebíamos um papel completamente diferente de quem éramos, um
papel para o qual ninguém nos escalaria. Interpretei uma personagem
chamada Lily em Ah! Wilderness, de Eugene O’Neill. Ela
era totalmente modesta, andava com passos muito contidos, tinha uma
voz única, que mal dava para ouvir, sempre tímida. Sou tímida, mas
essa não é a impressão que passo. Minha voz é muito intensa,
grave e forte. Era um papel para o qual ninguém me escalaria. Esse
era o método da Juilliard. Uma estrutura baseada e embebida no poder
da transformação. Eles escolhiam o material. Eles escolhiam as
peças e os papéis que achavam ter valor.
Passar o dia inteiro na faculdade,
morar em um apartamento péssimo, ter traumas e questões de
ansiedade não diagnosticados e estar sozinha em Nova York, fazia-me
sentir sobrecarregada. Pegava no sono na aula o tempo todo. Minha
amiga Michelle vivia me acordando. Quando grandes atores iam à
escola se apresentar, eu fingia estar muito animada, me sentava na
fileira da frente nesses eventos e não demorava muito para minha
cabeça tombar, minha boca se abrir e meus olhos começarem a
revirar. Michelle acenava diante do meu rosto energeticamente,
fazendo com os lábios: Acorda, porra!!! Ela parecia brava.
Era difícil ouvir e assistir aos
atores convidados brancos, às palestras de dramaturgos brancos, aos
projetos de brancos, aos personagens brancos, uma abordagem europeia
do trabalho, do discurso, da voz, do movimento. Todos estavam
voltados para nos moldar e esculpir em perfeitos atores brancos.
Estava implícito que eles eram o padrão. Que eles eram os melhores.
Sou uma atriz preta retinta de voz grave. Não importava o quanto eu
me esforçasse, quando saísse para o mundo, seria vista como uma
mulher preta retinta de voz grave. Meu Deus, quando saísse de lá
para o mundo, eu seria chamada para trabalhos baseados em… mim.
Tive que aceitar isso. E, admito, existem algumas peças clássicas e
contemporâneas nas quais nunca quis atuar mesmo!A única outra
pessoa negra no meu grupo era Cedric Harris. Havia na Juilliard
apenas trinta negros no total de 856 alunos inscritos em todas as
disciplinas: teatro, música e dança. Nós nos chamávamos de
Bancada Negra. Eu fazia parte dessa convenção. Todo mês de janeiro
tínhamos nossa celebração de Martin Luther King Jr., um programa
de variedades. Diria que até hoje é um dos melhores trabalhos
feitos por artistas que já vi. Em dança, música e teatro. Obras
criativas eram montadas para homenagear a história negra, a
autonomia negra… nós… eu. Tudo estava incluído, desde danças
zulus até grandes óperas e música gospel. No nosso cotidiano, não
tínhamos permissão de apresentar algo que não fosse ópera, balé
ou clássicos europeus. Ponto-final. Até que fomos orientados a NÃO
nos apresentarmos nas celebrações de MLK.Se atores entrassem na
Juilliard e já estivessem trabalhando, eram veementemente
incentivados a parar. Jazz, gospel, sapateado, dança moderna e
qualquer material étnico estava na lista de proibições. Quando
criamos a celebração de MLK, exploramos tudo o que constava nessa
lista. Foi nossa forma de rebelião. Disseram-nos que arruinaríamos
nosso instrumento. Bem, nossas almas também eram nosso instrumento.
Pouquíssimos membros do corpo docente
compareciam. Nós nos sentíamos racial e individualmente castrados
por uma filosofia fundamentada no apagamento de quem éramos e em dar
à luz alguém artisticamente aceitável. Alguém que os brancos
pudessem entender. Nossa paixão e vontade de nos apresentar, porém,
se equiparava à falta de reconhecimento que recebíamos pela nossa
contribuição para a faculdade. Em outras palavras, a ignorância
deles nos fez trabalhar mais por nós mesmos e pelo nosso ofício.
Juilliard me forçou a entender o
poder da minha negritude. Passei muito tempo da minha infância a
defendendo, sendo ridicularizada por ela. E também durante a
faculdade, tentando provar que era boa o bastante. Eu me
compartimentalizei. Durante meu tempo na Juilliard, estava com raiva.
Sempre recebia a tarefa de fazer o
discurso de abertura da celebração do MLK, e Laurie Carter, que era
negra e uma das reitoras, sempre dizia: “Arrase! Fale o que você
pensa.”Era a legitimação de uma voz calada por trauma, vergonha,
insegurança. Ali estava Laurie, que encontrou um espacinho dentro de
mim que ainda tinha vida e esperança, e o libertou.
Na primeira cerimônia, que ocorreu no
Avery Fisher Hall, subi ao palco e contei uma história. Era a
história de um escravizado no Caribe. Ele estava sempre fugindo.Era
um homem forte e grande que não queria ser controlado. Toda vez que
fugia, era capturado e espancado. Depois disso, fugia outra vez. Por
fim, para contê-lo de uma vez por todas, decidiram matar outro
escravizado. O corpo dele foi colocado nas costas do fugitivo.
Amarram bem apertado. Obrigaram-no a trabalhar o dia inteiro, sob o
sol quente, e à noite com o corpo nas costas. Obrigaram-no a
dormir e correr com o corpo nas costas. Até que começou a se
decompor. O homem grande e forte perdeu o apetite. Seu corpo foi
infectado pela carcaça, começou a enfraquecer, e ele morreu.
Perguntei: “Quantas pessoas negras nesta plateia se sentem como se
tivessem um corpo amarrado às costas? Quantas estão tentando viver
e lutar em uma sociedade que nos põe para baixo e está mais
interessada em nossa morte do que em nossa vida?”
Silêncio. Eu estava falando a minha
verdade. Era uma verdade carregada da dor de tudo que havia sido
despejado em mim, consciente e inconscientemente. De repente, como um
elefante sendo massacrado para ter as presas roubadas, eu estava
reagindo, lutando pelo meu espaço.
Todo ano, eu tentava me encaixar em
cada projeto e personagem. Achava que era o que eu devia fazer.
Espartilhos e perucas europeias gigantescas que nunca se encaixavam
sobre as minhas tranças. Ver meus colegas maravilhados com aquelas
fantasias lindas e imaginando como a vida devia ser incrível nos
anos 1780. A minha vontade era gritar: “Que merda!!! Sou diferente
de vocês!! Se voltássemos a 1780, não poderíamos existir no mesmo
mundo! Eu não sou branca!” O objetivo totalmente vergonhoso dessas
atividades era óbvio: fazer cada aspecto da sua negritude
desaparecer. E como eu poderia fazer isso? E, o mais importante, POR
QUÊ??!!!Nenhum dos meus colegas precisava ter um dialeto urbano,
sulista ou jamaicano perfeito para ser considerado excelente. “Eu
sou NEGRA!!! Sou retinta com lábios carnudos, nariz largo e coxas
grossas. Sou Viola!!”
A manifestação sempre fez parte da
minha vida. Quer fosse ficando de joelhos ou rezando em silêncio. E
Deus intervinha. No meu segundo ano na Juilliard, a faculdade estava
oferecendo uma bolsa de estudos de 2.500 dólares para um aluno
interessado em realizar um curso de verão que o fizesse crescer como
artista, que o ajudasse a se desenvolver, que liberasse algo dentro
de si. Precisávamos escrever uma redação de cinco páginas expondo
as motivações. Escrevi sobre estar perdida. Que não havia como
extravasar a paixão quando pediam que eu atuasse em papéis que não
apenas não tocavam meu coração, mas que também não eram escritos
para mim. Contei sobre o peso e o escopo distorcido da formação
eurocêntrica. Consegui a bolsa de estudos.
Minha amiga Kris World, que cursava
dança, ia à África todo verão com Chuck Davis, um coreógrafo de
danças tradicionais africanas da North Carolina School of the Arts.
Todo ano ele levava um grupo de pessoas, nem todas artistas, para um
país diferente do continente africano, a fim de estudar a dança, a
música e o folclore de diferentes povos. Naquele verão, ele ia à
Gâmbia, no oeste africano, para estudar os povos uólofe, diola,
mandinga e sosso.
A preparação, a viagem e a
experiência na África causaram uma mudança cataclísmica na minha
vida. Abriram um buraco no meu ser.
Tomei todas as vacinas necessárias
antes da viagem. Queria comer tudo o que visse quando chegasse lá
sem ter que me preocupar. Contei os dias, tomei o ônibus de
Providence para o aeroporto JFK e voei com o grupo — composto
exclusivamente de mulheres, e a maioria não atuava. Uma era
enfermeira. A outra era professora. A terceira ficava meio isolada,
parecia irritada. Ela se sentou e se encolheu. Não como se fosse
dormir, mas encolhida de dor. Chorava e olhava pela janela. A quarta
era uma enfermeira jamaicana muito gentil, mas extremamente tímida.
E havia eu e Kris World. Eu só faltava pular no meu assento de tão
animada!
Chegamos à Gâmbia após uma longa
escala em Amsterdã. Era noite. O aeroporto era pequeno e não tinha
área para retirada de bagagem. As malas simplesmente eram colocadas
em uma grande pilha. Homens africanos fortes, de uniforme e com armas
semiautomáticas estavam por toda parte. Encontramos nossas malas e
saímos. Foi amor à primeira vista. Potente como um primeiro beijo
ou uma excelente sessão de oração. O ar tinha um cheiro diferente.
Tons de laranja, azul e roxo pintavam o céu enquanto o sol se punha.
Um fraco toque de incenso misturado à brisa do oceano. A África me
esperava.
Ficamos no Bungalow Beach Hotel, à
beira-mar. Para nós, era como se fosse o Four Seasons, mas estava
mais para um Motel 6. Kris World e eu dividimos uma suíte.
Cara, estava quente. Até hoje, quando
está calor pra caramba, digo que está “quente como a África”.
Era tão úmido que minhas roupas íntimas levavam três dias para
secar depois de lavadas. Acordávamos às cinco da manhã e nos
encontrávamos na praia. Chuck nos ensinava sobre o povo que
encontraríamos naquele dia e nos ensinava alguns passos de dança.
Rezávamos e corríamos para o mar, com roupa e tudo. Depois,
voltávamos para o hotel e nos trocávamos. Chuck tinha contratado
várias pessoas como motoristas, “embaixadores”. Eles nos pegavam
no hotel e nos levavam para os chamados compounds. No carro,
ríamos e cantávamos. O motorista nos ensinava uma canção do povo
dele. O primeiro povo foi o mandinga. Os mandingas são o povo de
Alex Haley, celebrado autor de Negras raízes — A saga de uma
família e A autobiografia de Malcolm X. Passamos a maior
parte do tempo com eles. Fomos ao compound, que era um
aglomerado de quatro ou cinco casas de adobe nas quais membros de uma
família viviam. Aprendemos sobre os tambores djembê, os tambores
falantes… eles são chamados assim porque imitam os sons da fala.
Entrávamos na área aberta do
compound e a família trazia todas as cadeiras disponíveis.
Eles nos cumprimentavam como se fôssemos parentes que não viam há
muito tempo. Havia alegria, animação! As crianças corriam para nos
abraçar. Em seguida, vinham os tamboreiros, todos homens. A
complexidade de cada papel que eles desempenhavam era surreal. As
mulheres entravam no círculo prontas para uma dança chamada
lenjeng, que imita o movimento de pássaros voando. Kris
sussurrou no meu ouvido: “Elas estão se preparando para se
soltar!”
Uma mulher entrava e começava a
dançar. Ela usava uma lapa (saia) enrolada no corpo e um
turbante. Enquanto sorria com uma alegria contagiante, seus pés
batiam e os tambores seguiam o ritmo. Ela batia os pés e devagar,
mas com determinação, seus braços subiam e os pés deixavam de
bater para pular. Logo, parecia que ela estava voando. Outras
mulheres começavam a ulular e mais uma mulher pulava para dentro do
círculo, ficando cara a cara com a primeira. Elas se encaravam com
muita intensidade, então seguravam a cabeça uma da outra e voavam
juntas. A terra inteira parecia se mover. Poeira girava ao nosso
redor. Estávamos testemunhando algo divino.
A dança continuaria por horas. Mais
mulheres se juntavam. Algumas jovens, outras velhas. Quando
terminavam, sentavam-se no chão e massageavam os pés umas das
outras e ululavam. Enquanto tudo isso acontecia, entoavam uma música
repetidas vezes que dizia, em tradução livre: “Eu não vim aqui
por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida.
Vim por muito mais.”
Eu a cantei tanto que se tornou uma
oração. Eu estava ali por… algo. Eu clamava por algo.
Cada um de nós tinha que ficar de pé
diante do grupo, cantar e dançar o lenjeng. Também tínhamos que
aprender uma série de frases.
“Sumole” — Olá, como você
está?
“Ibije” — Estou bem.
“Kon te na te” — Como vai sua
família?
“Te na te” — Eles estão bem.
“Kara be” — Estou aqui.
“Kara jon” — Eu te vejo.
A propósito, tínhamos que cumprir
todo esse ritual de cumprimentos ao começar uma conversa com alguém.
Mesmo que só tivéssemos parado para pedir uma manga! Isso os
deixava felizes. Serem vistos, se sentirem valorizados. A África me
deixou zonza de alegria. Cada cheiro, som, cor afetavam meus sentidos
de maneira apaixonante. Nenhum tom de amarelo, verde ou azul era
igual aos que eu conhecia. Pessoas dedicadas à arte têxtil
produziam a própria tinta. Eles faziam lapas, kufi
(chapéus), grad boo boos (vestidos). Sem remorso algum,
lindas peles retintas ficavam mais escuras sob o sol. Toda criança
tinha muitas mulheres para cuidar delas. A tranquilidade com a qual
as pessoas serviam umas às outras… O cabelo crespo, cacheado, a
complexidade dos rituais, inúmeras linguagens.
Fomos a uma cerimônia de escolha do
nome de um bebê. Depois de sete dias de nascido, o bebê recebe um
nome. A taxa de mortalidade infantil era tão alta que os pais
esperavam sete dias antes de nomear a criança. O bebê geralmente
estava abaixo do peso, mas com certeza viveria depois que passasse da
primeira semana. Esperávamos no compound até que os pais
saíssem com o bebê da pequena casa de adobe. Havia mulheres
amamentando crianças enquanto esperavam para celebrar.
Era um dia nublado e as mulheres
estavam sentadas, rindo juntas. Tinham cabaças, grandes tigelas de
madeira, diante delas e baldes com um pouco de água. Quando os pais
saíam da casa, as mulheres paravam de amamentar e colocavam seus
bebês no chão sobre um pedaço de pano. Voltavam a cobrir os seios
com a roupa, viravam as tigelas dentro do balde com água, pegavam
dois galhos e começavam a tamborilar nas cabaças em uníssono. Com
orgulho. Com uma irmandade profunda. Presenciar aquilo tirou nosso
fôlego! Kris World e eu vínhamos de uma instituição que nos
oferecia uma formação clássica para nos tornarmos auteurs e
estávamos testemunhando um espetáculo diante de nossos olhos.
Aquilo era genial. Era arte! A expressão nascendo da necessidade de
ter rituais para lidar com a vida. Quando terminavam, simplesmente
baixavam os galhos, desviravam as cabaças dentro dos baldes com
água, pegavam os bebês e voltavam a amamentar.
[...]
Viola Davis, in Em busca de mim

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