sábado, 20 de dezembro de 2025

Capítulo 14 — Me tornando eu



Eu não vim aqui por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais.
CANÇÃO RITUALÍSTICA MANDINGA

Meus primeiros dias na Juilliard são um borrão. Em parte porque estava tentando encaixar o começo de uma fase importantíssima da minha vida na rotina que eu levava, e em parte também por causa do apartamento. Na verdade, não entendia bem os imóveis em Nova York. Para mim, todos os apartamentos se pareciam com o de George Jefferson, de Tudo em família.
Antes de aceitar minha vaga na Juilliard, precisei organizar minhas finanças. Tinha o dinheiro da Fundação Rhode Island e economias do meu trabalho diurno como atriz no Providence Performing Arts Center. Meu orçamento estava apertado.
A solução ideal parecia ser sublocar um apartamento barato em Nova York, em um prédio que tivesse o valor do aluguel estabilizado por lei. Susan Lawson, a dona do apartamento que subloquei, era uma diretora vanguardista que mais tarde chefiou o curso de teatro na ­Universidade Columbia. Ela me abordou depois de uma das peças em que estive na Trinity Rep. Contei que tinha sido aceita na Juilliard. Ela ficou impressionada e disse:
Tenho um apartamento para você.
Ai, meu Deus. Olha como Deus age. Ai, meu Deus.
É verdade. Tenho um apartamento para você. É o meu.
Susan é uma mulher elegante. Ela tinha acabado de se tornar diretora artística na Trinity Rep, assumindo o lugar de Adrian Hall. Ela estaria em Providence. Eu estaria em Nova York. Era perfeito!
Ai, meu Deus. Preciso preencher um formulário de inscrição?
Não, se você quiser é seu.
Quanto é o aluguel?
Duzentos e noventa dólares por mês.
Ai, meu Deus. Eu aceito. Aceito, sim. Sem problemas.
Ela provavelmente me perguntou: “Você não quer ver o apartamento primeiro?”, mas eu não tinha tempo para isso e só quis saber:
Como é o apartamento?
Eu adoro. Moro lá há anos. É um apartamento estilo studio.
Ela o fez parecer melhor do que realmente era.
Pensei: É o apartamento dela, e ela adora. Uma diretora do alto escalão. Apartamento dela. No Village.
Sim, vou querer alugar.
Quando cheguei ao prédio na First Avenue, entre a Second e a Third Streets, o que ficou se repetindo na minha mente foram as palavras dela: Ah, eu adoro o apartamento. Subir as escadas me fez sentir em um daqueles comerciais do Booking.com em que alguém está há horas na estrada, perdeu os sapatos, os filhos vomitaram, está cansado... Então a pessoa abre a porta do quarto do hotel e se depara com uma suíte gigantesca e suntuosa com vista para o mar. Era o que eu esperava do apartamento de Susan, o cenário para os meus anos na Juilliard. Minha expectativa era ficar deslumbrada! Minha nossa, quando abri aquela maldita porta, não foi isso que aconteceu. Foi horrível.
O lugar tinha uns quarenta metros quadrados. Havia um fogão pequeno no lado direito e prateleiras de madeira improvisadas. Abaixo delas havia uma pia branca grande e enferrujada. Era uma daquelas pias que geralmente se vê em porões. Ao lado da pia ficava a banheira. Isso mesmo. Bem no meio do apartamento tinha uma banheira com manchas de ferrugem. Pensei: Cadê a privada? Eu a encontrei no que me pareceu ser um closet minúsculo. Era uma daquelas privadas com cordinha para dar descarga. O lugar estava infestado de ratos. Infestado. Eles saíam de buracos no assoalho. À noite, dava para ouvi-los subindo e comendo todos os mantimentos nas prateleiras. Por conta da minha infância, não é surpresa que aquilo tenha me enlouquecido. Eu matava mais de dez ratos por dia. Podia ouvir as ratoeiras estalando. Em seguida, jogava a ratoeira, com rato e tudo, no lixo. De jeito nenhum eu tocaria neles!
Liguei para ela em um fim de semana:
Susan! Tem ratos no seu apartamento!— Não me lembro de a gente ter visto ratos, Viola — disse ela.— Susan, tem ratos aqui. Estou matando uma dúzia por dia. Você precisa me ajudar. Ligue para o senhorio.
Não posso voltar, era o que eu estava pensando.
Nada.
Avisei a Susan:
Só vou ficar até o fim do ano. Ela poderia ter me dado um desconto no aluguel. Como mencionei, o valor do aluguel era controlado por lei. Ela morava ali havia décadas. Anos depois, talvez por volta dos anos 1990, eu estava trabalhando com alguém em São Francisco e contei o caso desse apartamento. No meio da conversa, essa pessoa me disse:
Eu me lembro de Susan Lawson. Ouvi dizer que ela tinha o pior apartamento que alguém já viu na vida. Todos os atores de Nova York sabiam disso.
Em defesa de Susan, a vida em Nova York era assim mesmo. Uma selva de pedra repleta de pessoas apressadas, esforçadas e cheias de sonhos, que trabalhavam duro para se dar bem na vida. Todas aglomeradas em prédios altos, cujos proprietários tinham como único propósito ver quantas pessoas conseguiam enfiar ali. Eu amava a austeridade da cidade. Amo como Nova York é viva. Só não gosto das moradias. Precisava de um lugar que mantivesse essa austeridade da cidade do lado de fora.
Na época, a área não era muito melhor que o apartamento. O trem da linha F quase nunca funcionava. Quando saía dele, via as mesmas pessoas em situação de rua. Uma mulher que sempre surgia com um novo hematoma. Mesmo todo dia participando de um pedacinho ínfimo de sua vida, dava para perceber que ela estava sendo espancada. Por vezes, chegando em casa, eu encontrava sangue na porta da frente do prédio, isolada pela fita zebrada da polícia. Isso acontecia por causa do CBGB, um antigo bar de motociclistas — que na época tinha perdido o glamour — no qual algumas das maiores estrelas do rock começaram a carreira: Patti Smith, The B-52s, Blondie, Joan Jett & the Blackhearts, Talking Heads. À noite, o lugar entrava em ebulição e esse tumulto culminava em muito vômito e sangue na entrada do meu prédio.
O apartamento nunca ficava frio. Conservava o calor. Sempre tinha água quente. A descarga sempre funcionava. Essas eram as únicas coisas boas de se morar ali. Eu ficava na faculdade o dia inteiro e só voltava à noite, mas passava todos os fins de semana em casa. E comia o dia todo. Comia, comia, comia. Nunca fui de beber, mas algumas vezes bebi uma cervejinha junto com a refeição. Ganhei quase nove quilos comendo baguete com salame, queijo, tomates e mostarda; uma panela de macarrão todos os dias; e quase meio litro de sorvete Häagen-Dazs de passas ao rum.
Comecei o curso na Juilliard com 18 outros colegas de classe. No fim do primeiro ano, éramos 14. Um foi expulso. Um foi cortado. Os outros dois desistiram; ambos eram alunos negros. Existem quatro grupos diferentes na Xilindrólliard, como chamávamos. Cada grupo recebe um número. Então, no primeiro ano o nosso era o 22. No segundo ano, 21; no terceiro, 20; e no quarto, 19.
No instante em que passei por aquelas portas na esquina da Sixty-Fifth com a Broadway, ficou evidente por que tantos eram expulsos ou iam embora desesperados. Era difícil. O que levava alguém a ser aceito era logo deixado em segundo plano. Eles não tinham interesse no que fazíamos bem, e sim no que fazíamos mal. Se você fosse uma mocinha sonhadora e ingênua, pediam que interpretasse o papel de uma matriarca pé no chão. Caso se mostrasse forte e emotivo, queriam ver seu lado mais leve, mesmo que para isso tivessem que pressioná-lo ao extremo.
John Styk, Robert Williams, Marian Seldes, Moni Yakim, Jude ­Leibowitz — esses eram nossos professores no primeiro ano. Começávamos cedo toda manhã, mais ou menos às oito, e raramente terminávamos antes de altas horas da noite. Tínhamos aulas de oratória, voz, Técnica de Alexander, movimento e estudo de cena.
A Técnica de Alexander ensina o ator a usar o corpo sem estresse nem tensão. Alunos do primeiro ano não atuavam com alunos do segundo, terceiro ou quarto, porque cada ano tinha seus objetivos específicos e era um grupo separado. O primeiro ano tinha como foco a descoberta. Encenamos uma peça de Shakespeare chamada Péricles.
Eles queriam ver o que tínhamos a oferecer. Foi dirigida pela grande atriz, hoje já falecida, Marian Seldes. Podíamos fazer o que quiséssemos. Para o projeto seguinte, recebíamos um papel completamente diferente de quem éramos, um papel para o qual ninguém nos escalaria. Interpretei uma personagem chamada Lily em Ah! ­Wilderness, de Eugene O’Neill. Ela era totalmente modesta, andava com passos muito contidos, tinha uma voz única, que mal dava para ouvir, sempre tímida. Sou tímida, mas essa não é a impressão que passo. Minha voz é muito intensa, grave e forte. Era um papel para o qual ninguém me escalaria. Esse era o método da Juilliard. Uma estrutura baseada e embebida no poder da transformação. Eles escolhiam o material. Eles escolhiam as peças e os papéis que achavam ter valor.
Passar o dia inteiro na faculdade, morar em um apartamento pés­simo, ter traumas e questões de ansiedade não diagnosticados e estar sozinha em Nova York, fazia-me sentir sobrecarregada. Pegava no sono na aula o tempo todo. Minha amiga Michelle vivia me acordando. Quando grandes atores iam à escola se apresentar, eu fingia estar muito animada, me sentava na fileira da frente nesses eventos e não demorava muito para minha cabeça tombar, minha boca se abrir e meus olhos começarem a revirar. Michelle acenava diante do meu rosto energeticamente, fazendo com os lábios: Acorda, porra!!! Ela parecia brava.
Era difícil ouvir e assistir aos atores convidados brancos, às palestras de dramaturgos brancos, aos projetos de brancos, aos personagens brancos, uma abordagem europeia do trabalho, do discurso, da voz, do movimento. Todos estavam voltados para nos moldar e esculpir em perfeitos atores brancos. Estava implícito que eles eram o padrão. Que eles eram os melhores. Sou uma atriz preta retinta de voz grave. Não importava o quanto eu me esforçasse, quando saísse para o mundo, seria vista como uma mulher preta retinta de voz grave. Meu Deus, quando saísse de lá para o mundo, eu seria chamada para trabalhos baseados em… mim. Tive que aceitar isso. E, admito, existem algumas peças clássicas e contemporâneas nas quais nunca quis atuar mesmo!A única outra pessoa negra no meu grupo era Cedric Harris. Havia na Juilliard apenas trinta negros no total de 856 alunos inscritos em todas as disciplinas: teatro, música e dança. Nós nos chamávamos de Bancada Negra. Eu fazia parte dessa convenção. Todo mês de janeiro tínhamos nossa celebração de Martin Luther King Jr., um programa de variedades. Diria que até hoje é um dos melhores trabalhos feitos por artistas que já vi. Em dança, música e teatro. Obras criativas eram montadas para homenagear a história negra, a autonomia negra… nós… eu. Tudo estava incluído, desde danças zulus até grandes óperas e música gospel. No nosso cotidiano, não tínhamos permissão de apresentar algo que não fosse ópera, balé ou clássicos europeus. Ponto-final. Até que fomos orientados a NÃO nos apresentarmos nas celebrações de MLK.Se atores entrassem na Juilliard e já estivessem trabalhando, eram veementemente incentivados a parar. Jazz, gospel, sapateado, dança moderna e qualquer material étnico estava na lista de proibições. Quando criamos a celebração de MLK, exploramos tudo o que constava nessa lista. Foi nossa forma de rebelião. Disseram-nos que arruinaríamos nosso instrumento. Bem, nossas almas também eram nosso instrumento.
Pouquíssimos membros do corpo docente compareciam. Nós nos sentíamos racial e individualmente castrados por uma filosofia fundamentada no apagamento de quem éramos e em dar à luz alguém artisticamente aceitável. Alguém que os brancos pudessem entender. Nossa paixão e vontade de nos apresentar, porém, se equiparava à falta de reconhecimento que recebíamos pela nossa contribuição para a faculdade. Em outras palavras, a ignorância deles nos fez trabalhar mais por nós mesmos e pelo nosso ofício.
Juilliard me forçou a entender o poder da minha negritude. Passei muito tempo da minha infância a defendendo, sendo ridicularizada por ela. E também durante a faculdade, tentando provar que era boa o bastante. Eu me compartimentalizei. Durante meu tempo na Juilliard, estava com raiva.
Sempre recebia a tarefa de fazer o discurso de abertura da celebração do MLK, e Laurie Carter, que era negra e uma das reitoras, sempre dizia: “Arrase! Fale o que você pensa.”Era a legitimação de uma voz calada por trauma, vergonha, insegurança. Ali estava Laurie, que encontrou um espacinho dentro de mim que ainda tinha vida e esperança, e o libertou.
Na primeira cerimônia, que ocorreu no Avery Fisher Hall, subi ao palco e contei uma história. Era a história de um escravizado no Caribe. Ele estava sempre fugindo.Era um homem forte e grande que não queria ser controlado. Toda vez que fugia, era capturado e espancado. Depois disso, fugia outra vez. Por fim, para contê-lo de uma vez por todas, decidiram matar outro escravizado. O corpo dele foi colocado nas costas do fugitivo. Amarram bem apertado. Obrigaram-no a trabalhar o dia inteiro, sob o sol quente, e à noite com o corpo nas costas. ­Obrigaram-no a dormir e correr com o corpo nas costas. Até que começou a se decompor. O homem grande e forte perdeu o apetite. Seu corpo foi infectado pela carcaça, começou a enfraquecer, e ele morreu. Perguntei: “Quantas pessoas negras nesta plateia se sentem como se tivessem um corpo amarrado às costas? Quantas estão tentando viver e lutar em uma sociedade que nos põe para baixo e está mais interessada em nossa morte do que em nossa vida?”
Silêncio. Eu estava falando a minha verdade. Era uma verdade carregada da dor de tudo que havia sido despejado em mim, consciente e inconscientemente. De repente, como um elefante sendo massacrado para ter as presas roubadas, eu estava reagindo, lutando pelo meu espaço.
Todo ano, eu tentava me encaixar em cada projeto e personagem. Achava que era o que eu devia fazer. Espartilhos e perucas europeias gigantescas que nunca se encaixavam sobre as minhas tranças. Ver meus colegas maravilhados com aquelas fantasias lindas e imaginando como a vida devia ser incrível nos anos 1780. A minha vontade era gritar: “Que merda!!! Sou diferente de vocês!! Se voltássemos a 1780, não poderíamos existir no mesmo mundo! Eu não sou branca!” O objetivo totalmente vergonhoso dessas atividades era óbvio: fazer cada aspecto da sua negritude desaparecer. E como eu poderia fazer isso? E, o mais importante, POR QUÊ??!!!Nenhum dos meus colegas precisava ter um dialeto urbano, sulista ou jamaicano perfeito para ser considerado excelente. “Eu sou NEGRA!!! Sou retinta com lábios carnudos, nariz largo e coxas grossas. Sou Viola!!”
A manifestação sempre fez parte da minha vida. Quer fosse ficando de joelhos ou rezando em silêncio. E Deus intervinha. No meu segundo ano na Juilliard, a faculdade estava oferecendo uma bolsa de estudos de 2.500 dólares para um aluno interessado em realizar um curso de verão que o fizesse crescer como artista, que o ajudasse a se desenvolver, que liberasse algo dentro de si. Precisávamos escrever uma redação de cinco páginas expondo as motivações. Escrevi sobre estar perdida. Que não havia como extravasar a paixão quando pediam que eu atuasse em papéis que não apenas não tocavam meu coração, mas que também não eram escritos para mim. Contei sobre o peso e o escopo distorcido da formação eurocêntrica. Consegui a bolsa de estudos.
Minha amiga Kris World, que cursava dança, ia à África todo verão com Chuck Davis, um coreógrafo de danças tradicionais africanas da North Carolina School of the Arts. Todo ano ele levava um grupo de pessoas, nem todas artistas, para um país diferente do continente africano, a fim de estudar a dança, a música e o folclore de diferentes povos. Naquele verão, ele ia à Gâmbia, no oeste africano, para estudar os povos uólofe, diola, mandinga e sosso.
A preparação, a viagem e a experiência na África causaram uma mudança cataclísmica na minha vida. Abriram um buraco no meu ser.
Tomei todas as vacinas necessárias antes da viagem. Queria comer tudo o que visse quando chegasse lá sem ter que me preocupar. Contei os dias, tomei o ônibus de Providence para o aeroporto JFK e voei com o grupo — composto exclusivamente de mulheres, e a maioria não atuava. Uma era enfermeira. A outra era professora. A terceira ficava meio isolada, parecia irritada. Ela se sentou e se encolheu. Não como se fosse dormir, mas encolhida de dor. Chorava e olhava pela janela. A quarta era uma enfermeira jamaicana muito gentil, mas extremamente tímida. E havia eu e Kris World. Eu só faltava pular no meu assento de tão animada!
Chegamos à Gâmbia após uma longa escala em Amsterdã. Era noite. O aeroporto era pequeno e não tinha área para retirada de bagagem. As malas simplesmente eram colocadas em uma grande pilha. Homens africanos fortes, de uniforme e com armas semiautomáticas estavam por toda parte. Encontramos nossas malas e saímos. Foi amor à primeira vista. Potente como um primeiro beijo ou uma excelente sessão de oração. O ar tinha um cheiro diferente. Tons de laranja, azul e roxo pintavam o céu enquanto o sol se punha. Um fraco toque de incenso misturado à brisa do oceano. A África me esperava.
Ficamos no Bungalow Beach Hotel, à beira-mar. Para nós, era como se fosse o Four Seasons, mas estava mais para um Motel 6. Kris World e eu dividimos uma suíte.
Cara, estava quente. Até hoje, quando está calor pra caramba, digo que está “quente como a África”. Era tão úmido que minhas roupas íntimas levavam três dias para secar depois de lavadas. Acordávamos às cinco da manhã e nos encontrávamos na praia. Chuck nos ensinava sobre o povo que encontraríamos naquele dia e nos ensinava alguns passos de dança. Rezávamos e corríamos para o mar, com roupa e tudo. Depois, voltávamos para o hotel e nos trocávamos. Chuck tinha contratado várias pessoas como motoristas, “embaixadores”. Eles nos pegavam no hotel e nos levavam para os chamados compounds. No carro, ríamos e cantávamos. O motorista nos ensinava uma canção do povo dele. O primeiro povo foi o mandinga. Os mandingas são o povo de Alex Haley, celebrado autor de Negras raízes — A saga de uma família e A autobiografia de Malcolm X. Passamos a maior parte do tempo com eles. Fomos ao compound, que era um aglomerado de quatro ou cinco casas de adobe nas quais membros de uma família viviam. Aprendemos sobre os tambores djembê, os tambores falantes… eles são chamados assim porque imitam os sons da fala.
Entrávamos na área aberta do compound e a família trazia todas as cadeiras disponíveis. Eles nos cumprimentavam como se fôssemos parentes que não viam há muito tempo. Havia alegria, animação! As crianças corriam para nos abraçar. Em seguida, vinham os tamboreiros, todos homens. A complexidade de cada papel que eles desempenhavam era surreal. As mulheres entravam no círculo prontas para uma dança chamada lenjeng, que imita o movimento de pássaros voando. Kris sussurrou no meu ouvido: “Elas estão se preparando para se soltar!”
Uma mulher entrava e começava a dançar. Ela usava uma lapa (saia) enrolada no corpo e um turbante. Enquanto sorria com uma alegria contagiante, seus pés batiam e os tambores seguiam o ritmo. Ela batia os pés e devagar, mas com determinação, seus braços subiam e os pés deixavam de bater para pular. Logo, parecia que ela estava voando. Outras mulheres começavam a ulular e mais uma mulher pulava para dentro do círculo, ficando cara a cara com a primeira. Elas se encaravam com muita intensidade, então seguravam a cabeça uma da outra e voavam juntas. A terra inteira parecia se mover. Poeira girava ao nosso redor. Estávamos testemunhando algo divino.
A dança continuaria por horas. Mais mulheres se juntavam. Algumas jovens, outras velhas. Quando terminavam, sentavam-se no chão e massageavam os pés umas das outras e ululavam. Enquanto tudo isso acontecia, entoavam uma música repetidas vezes que dizia, em tradução livre: “Eu não vim aqui por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais.”
Eu a cantei tanto que se tornou uma oração. Eu estava ali por… algo. Eu clamava por algo.
Cada um de nós tinha que ficar de pé diante do grupo, cantar e dançar o lenjeng. Também tínhamos que aprender uma série de frases.

Sumole” — Olá, como você está?
Ibije” — Estou bem.
Kon te na te” — Como vai sua família?
Te na te” — Eles estão bem.
Kara be” — Estou aqui.
Kara jon” — Eu te vejo.

A propósito, tínhamos que cumprir todo esse ritual de cumprimentos ao começar uma conversa com alguém. Mesmo que só tivéssemos parado para pedir uma manga! Isso os deixava felizes. Serem vistos, se sentirem valorizados. A África me deixou zonza de alegria. Cada cheiro, som, cor afetavam meus sentidos de maneira apaixonante. Nenhum tom de amarelo, verde ou azul era igual aos que eu conhecia. Pessoas dedicadas à arte têxtil produziam a própria tinta. Eles faziam lapas, kufi (chapéus), grad boo boos (vestidos). Sem remorso algum, lindas peles retintas ficavam mais escuras sob o sol. Toda criança tinha muitas mulheres para cuidar delas. A tranquilidade com a qual as pessoas serviam umas às outras… O cabelo crespo, cacheado, a complexidade dos rituais, inúmeras linguagens.
Fomos a uma cerimônia de escolha do nome de um bebê. Depois de sete dias de nascido, o bebê recebe um nome. A taxa de mortalidade infantil era tão alta que os pais esperavam sete dias antes de nomear a criança. O bebê geralmente estava abaixo do peso, mas com certeza viveria depois que passasse da primeira semana. Esperávamos no compound até que os pais saíssem com o bebê da pequena casa de adobe. Havia mulheres amamentando crianças enquanto esperavam para celebrar.
Era um dia nublado e as mulheres estavam sentadas, rindo juntas. Tinham cabaças, grandes tigelas de madeira, diante delas e baldes com um pouco de água. Quando os pais saíam da casa, as mulheres paravam de amamentar e colocavam seus bebês no chão sobre um pedaço de pano. Voltavam a cobrir os seios com a roupa, viravam as tigelas dentro do balde com água, pegavam dois galhos e começavam a tamborilar nas cabaças em uníssono. Com orgulho. Com uma irmandade profunda. Presenciar aquilo tirou nosso fôlego! Kris World e eu vínhamos de uma instituição que nos oferecia uma formação clássica para nos tornarmos auteurs e estávamos testemunhando um espetáculo diante de nossos olhos. Aquilo era genial. Era arte! A expressão nascendo da necessidade de ter rituais para lidar com a vida. Quando terminavam, simplesmente baixavam os galhos, desviravam as cabaças dentro dos baldes com água, pegavam os bebês e voltavam a amamentar.
[...]

Viola Davis, in Em busca de mim

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